Ana Lee e a Liberdade - Um vôo rasante. (parte 2)

Quando eu de cima de meu muro solitário vi aquele anjo voando em direção ao sol. E, como disse antes, aquela visão de um anjo de asas bem brancas voando com asas douradas pelo sol daquela manhã tão linda, aquilo me deixou extremamente feliz. Mas algo em meu espírito felino me avisava da paixão pela luz sem conhecê-la que ela enfrentaria. E foi um das primeiras vezes que este Gato Laranja aqui miou para o sol, observando aquelas asas de liberdade sumirem no horizonte em busca da felicidade. Fiquei ali parado contemplando durante vários minutos a cena inesquecível daquele vôo até que ela desapareceu de minha vista no infinito do céu alaranjado pelo sol refletindo do mar e de minha imaginação.
Havia uma certeza em mim, certeza de gato, de que ela iria embora para sempre. Pois foi tudo o que sempre ela sonhou, sumir de sua casa, ir embora. E ela teria muito ainda o que ver e viver em sua nova vida.
E minha certeza vinha depois de muitas conversas com ela sobre a liberdade e a poesia que essa palavra carrega em si mesma. Jamais pensei que Ana Lee voltasse para a o chão. Tamanha a vontade que ela tinha de ser livre tamanha a vontade que ela tinha de experimentar o mundo por seus próprios meios e olhos sinceros de menina doce.
Os dias se passaram e eu continuei minha vida de gato de telhado em telhado, de muro em muro. Mas algo em mim havia mudado também com aquela visão, pois eu sempre que podia passava no muro daquela casa e olhava aquele quarto vazio, a cama desarrumada. E meus ouvidos felinos ouviam um chorar angustiante de uma mãe lá dentro. Este chorar era como que o chorar de Verônica com um lenço ensangüentado na mão vendo seu Senhor passando pela dor da morte. Mas aquilo não era a única coisa que me doía. Pois mesmo feliz de saber que Ana Lee estava livre tinha algo em mim que havia se partido. Algo em mim que ficou faltando ou que foi levado com aquele anjo. Foi a primeira vez que senti que eu também tinha coração. E que estava eu, um gato vira-latas, apaixonado por um anjo.
Pois bem, o tempo passou e uma semana parecia um mês. Minha vida de gato seguia até tranqüila. Mas sempre eu perambulava pelos arredores da casa dela e via a mesma cena da cama ainda desfeita e o mesmo choro sofrido vindo lá de dentro. Partia-me a alma aquele choro daquela megera mãe.
Até que um dia entrei sorrateiramente pela janela e andei pelo quarto de outrora dores insuportáveis de uma menina presa e agora abandonado por uma anja livre. Vi discos de rock espalhados pelo chão. Meu instinto fez com que eu me aproximasse de um guarda roupas que na porta jazia uma camiseta preta de uma banda de dos anos noventa, uma banda da qual ela gostava muito. Encontrei no chão seu amuleto em forma de coração cor-de-rosa jogado embaixo da cama e guardei comigo.
E quanto mais eu me aproximava da porta do quarto mais aquele pranto de uma mãe desesperada se fazia presente em mim, mais seu volume e intensidade de sofrimento me compadeciam daquela mulher. Antes ignorante e carcereira de uma menina e agora com saudades e medo pela filha anja que voara pra longe, livre.
Senti medo que ela notasse minha presença em sua casa e fugi pela mesma janela que entrei. Ao subir no muro da casa ouvi uma voz doce, uma voz celestial e feliz me chamando. E quando olhei para cima em direção ao telhado da casa lá estava ela, Ana Lee com suas asas de penas brancas. Ela sorria muito, um sorriso de vitória e cansaço que estava praticamente escrito em seu rosto e seu olhar.
Pulei para cima do telhado o mais rápido que pude ao encontro dela. Ela me pegou no colo e me abraçou forte, minhas unhas e meu rabo laranja tigrado se arrepiaram.
- Senti sua falta meu gatinho... – me disse com uma ternura que na época de sua dor eu nunca havia notado em sua voz
- Eu senti a sua também.
- Mas meu sentimento é confuso, pois nunca pensei em querer mais vir ao chão, de voltar a essa casa.
Essas palavras dela me entorpeceram demais, vi que ela estava com saudades, saudades de mim e isso era bom. Mas até que ponto um anjo tem saudade de um gato vira-lata? Ainda mais depois de tanto querer voar e agora conseguir verdadeiramente.
- Minhas saudades de você Ana Lee só me puseram uma realidade na cara a qual eu sempre fingi não ser do meu feitio felino. Eu te amo e não consigo entender como pude me apaixonar por uma humana e que agora virou anjo.
Ela ouviu isso de minha boca com perplexidade igual a minha quando notei que falara tal coisa assim, desse jeito franco, direto e sincero, sem esperar. Uma atitude de um inconseqüente e de um animal irracional que sou , afinal eu sou um gato!
- Você me surpreendeu com isso meu gatinho, mas...
O suspiro que ela deu antes de prosseguir durou mais ou menos dois segundos, mas para mim soaram como a eternidade de um amor não correspondido, à medida de uma carta que se espera e se sabe que nunca chegará.
-... Mas eu também descobri que não consigo viver longe de você, lá no mundo eu vivi tanta coisa, encontrei tantos anjos como eu, voávamos em névoas desconhecidas e em brumas de amor. Bebi do néctar dos deuses, mas ficava o tempo todo angustiada, sentindo que minha liberdade não era tudo aquilo que sonhei, sentindo que fantasiei muito em minha mente, mas ali não era meu mundo. Fiz amigos diferentes dos humanos comuns. Amigos que tinham a liberdade que eu conquistei. Mas na hora de dormir aquela alegria se transformava em tristeza e saudade. Saudade de nossas noites de lua cheia sobre o muro, você me ouvindo e entendendo a minha dor.
No que ela disse a palavra dor, senti que algo havia voltado junto com ela daquela viagem, e não era só a saudade que ela sentia de mim e que estavam embutidas também naquelas palavras uma saudade de sua mãe. Senti que era algo de que eu já conheci na vida. E na própria Ana Lee.
- Sua mãe chora sem parar. Desde o dia em que foi embora ela nunca mais entrou em seu quarto e deixou tudo como estava no dia de sua partida – eu precisava dizer isso a ela, mesmo que ela não quisesse ouvir, ou que em seu rosto se demonstrasse que ela já sabia disso. O que para mim representava que ela também havia ouvido aquele pranto mesmo estando longe.
- Meu gatinho, você guarda dois segredos com você?
- Sim.
- Um deles é que eu te amo também. Mas ainda ninguém deve saber disso e outro é que minha dor... minha dor saiu de minhas costas e agora está em meu peito, aqui dentro... – e apontava o coração com suas mãos sempre lindas, mas com um sorriso sumido de seus lábios naquele momento.
Aquela menina que vi muitas vezes chorar transformara-se numa linda mulher em minha frente. Tinha inconscientemente virado adulta, não sabia, mas sentia isso dentro dela. E eu sorri, com certo pesar, pois assistir alguém virar adulto em sua frente não é tão magnífico como ver uma menina se transformar em anjo.
Eu sem pensar muito a beijei sorrateiramente com tamanha intensidade e desejo que no momento em que a beijava, meus pelos sumiram, meu rabo desapareceu e minhas unhas e dentes afiados se transformaram. E ainda a beijando me vi na forma humana. Me senti na forma humana. Ela, que já não tocava mais no corpo de um gato neste beijo longo e duradouro, estremeceu com minha transformação em humano, mas me agarrou com mais força ainda em direção à sua boca. Nosso beijo durou treze minutos, segundo a Lua me contou depois, numa noite.
- Largue a minha filha seu canalha!!!
E ao olharmos para o chão, sem que nossos lábios se separassem, avistamos o pai dela furioso lá em baixo, subindo já por uma escada vindo em nossa direção. E no momento em que nosso beijo foi interrompido me transformei em gato novamente, num passe de mágica. O que deixou o homem perplexo diante daquela cena de transformação, e transformado em gato novamente de uma maneira felina e instintiva corri muito, pulei de telhado em telhado olhando para trás e vendo a cena dela tendo suas asas amarradas com uma corda pelo seu pai enquanto seus olhos se transformavam em rios de sofrimento novamente. Como antes de terem nascido suas asas.
Jurei naquele instante voltar para salvá-la de lá enquanto corria e sentia meu coração de gato pela primeira vez em anos de sete vidas amando de verdade. Ela me chamava aos prantos quando olhei para trás pela última vez e miei bem alto para que ela ouvisse que eu também a amava e nunca a abandonaria.




GATO LARANJA
01/04/2008