Ana Lee e a Liberdade (parte 1)

Liberdade é uma conquista. Para vocês humanos logicamente, pois nós gatos, parafraseando o poeta, já nascemos livres. Nenhuma jaula forçada pode segurar o coração liberto de um felino, nenhuma.
E isto me fez lembrar de uma menina inesquecível em minha alma de sete vidas que conheci e conheço em meus muros que se chama Ana Lee. Se eu aqui fosse falar tudo mesmo sobre ela escreveria um romance lindo, pois ela é incrível e sua história, que apesar de sua pouca idade aí pra vocês humanos, é longa e recheada de sonhos. Sonhos e ideais de conquista simples, mas humanos e verdadeiros. Como todo sonho deve ser para não virar pesadelo futuro.
Dizem que toda liberdade tem seu preço, para todos. Mas para Ana Lee essa liberdade tinha preço sim, mas não era em valores financeiros que ela media isso, ela quantificava seu sonho de ser livre em um único número. O número vinte e um. O dia eu que completaria vinte e um anos.
Nascera ela de uma boa família, pais inteligentes e modernos. Desde a infância primeira, Ana Lee se mostrava diferente. Mostrava-se inteligente a olhos vistos de seus familiares. Tanto que aprendeu a ler muito precoce, e desde que leu seu primeiro livro nunca mais parou de ler. Tinha uma tia que achava que ela era reclusa demais e até meio fechada pra sua idade. Que havia algo estranho nela ao ponto de ela ser sempre mais feliz com um livro na mão do que brincando com seus amiguinhos na escola.
Mas uma coisa intrigava muito seus pais, seus irmãos e ela mesma. Pois desde que pode se queixar de alguma coisa em sua vida ela se queixava de dores profundas em suas costas, na altura de seu coração para ser mais exato. Levaram esta menina à médicos profetas, doutores intrigados, curandeiros disfarçados e nada se encontrava nela que justificasse essa dor. Nem exames clínicos e muito menos psíquicos. Mas ninguém nunca pensou em tirar uma radiografia de sua alma.
Na medida em que Ana Lee ia crescendo a dor aumentava, a ponto de seus pais acharem que essa dor era invenção de sua cabeça sonhadora e fértil demais para sua idade. Que era tudo uma farsa tirada de seus livros para que a atenção lhes fosse chamada. E foi assim que pararam todos de levar a sério suas queixas e suas dores.
Aos treze anos Ana Lee foi apresentada ao amor. Que veio feito fúria de vento noroeste avisando chuva forte. Não pôde dizer isto a ninguém, pois a dor em suas costas aumentava à medida que o fogo da paixão dominava seu coração adolescente. E já há tempos tinha perdido o diálogo generoso e infantil de outrora com seus pais. Desse amor veio um namorado que lhe apresentou algo novo em sua vida, um violão. Que logo entre seus primeiros olhares ao novo aparelho de sonhos e seus primeiros acordes, somou-se em sua estante de livros como coisa nascida nela e inseparável dela. Mas as dores aumentavam e muito.
Um dia, em seus livros, um índio de antiga monta americana lhe deu em segredo um amuleto cor-de-rosa para que usasse pendurado em seu pescoço sempre, a fim de diminuir sua dor nas costas. Ela nunca mais o tirou do pescoço e sempre que ainda a vejo, este amuleto reluz e me remete a este tempo da vida de Ana Lee, quando ela veio e me mostrou o amuleto, lindo em forma de coração.
Aos quinze anos Ana Lee sentia uma vontade imensa de sumir, pois sentia seu sonho de ser livre sempre castrado por seus pais que não a entendiam e muito menos a levavam a sério sobre suas vontades e suas dores. Queixava-se e era trancada em seu quarto com seus livros e seu violão, pelos pais ou por vontade própria. E assim um dia tomou uma decisão radical: fugiu de casa. Entretanto, sua pouca idade e sua pouca perspicácia sobre o mundo exterior, logo levaram seus pais a seu paradeiro, seu esconderijo, seu amor. Isto foi o ponto chave para que mais privação de liberdade se fizesse presente em sua vida e no seu dia-a-dia. Foi mandada para uma psicóloga. No começo ela não gostava, mas depois ela descobriu em sua terapeuta uma amiga de ouvidos atentos, conselhos honestos, palavras diretas e amor por ela mesma.
Até o dia em que completou dezoito anos e numa noite fria de um verão quente, estava eu em meu muro e ela apareceu chorando e dizendo que não suportava mais aquela dor nas costas e que alguém deveria ajudá-la. Mas como eu gato vira lata poderia falar algo sobre o que nunca foi tirado de mim do jeito que acontecia com ela. Conversamos horas sobre o amor, sobre música, sobre sonhos e lua cheia. Senti que seu coração se abrandou com nossa conversa. Senti que ela precisava de alguém que a ouvisse e a sentisse. Senti até dúvidas em meu próprio coração sobre ela. Que as carrego ainda.
Dezoito anos não lhe serviram de nada, ela me confessou numa tarde de sábado em que eu em meu telhado tomava sol nos pêlos. A não ser para poder dirigir e escolher sua profissão. Mas as regras e dúvidas eram tão grandes em seu coração que resolveu esperar mais sobre seus caminhos humanos profissionais. Olhou num espelho, viu imagens distorcidas dela mesma e se aquietou.
Só que uma coisa não mudava em nada: suas dores nas costas. E o que eram apenas dores no começo de uma vida feminina agora eram suplícios por remédios, conselhos e magias para que o tormento e o peso do mundo parassem de doer em sua carne de tão violenta forma.
O tempo foi passando e fui ficando mais próximo dela. Comecei até a freqüentar os muros de sua casa. E quase toda noite a chamava para conversar pela janela sobre o mundo e sobre poesia. Coisa que sempre gostamos muito. Nossa amizade se fortaleceu e ela encontrava em mim e em sua terapia semanal forças para vencer suas dores. Eu nem sempre me sentia bem, pois a fato de ser um felino quadrúpede e de pêlos cor-de-laranja me impediam que nossa amizade fosse além de nossas aparências. Mas nossos olhos não mentiam e isso era bom. Era como se a verdade se tornasse pura entre nós.
Até que o grande dia estava chegando para ela. E na noite antes de fazer vinte e um anos ela caminhando com dificuldades devido às dores veio perto de mim e me deu um abraço forte, e feliz me disse que seu sonho desta noite seria realizado. Eu chorei de emoção de vê-la tão sofredora e tão feliz ao mesmo tempo.
Fui fazer minhas rondas pelos muros da vizinhança até o dia nascer, em companhia da minha lua cheia. E a cena que vi ao amanhecer nunca mais saiu de minha cabeça. Mas antes de contar o que vi no raiar do dia, conto o que Ana Lee me disse sobre aquela manhã.
Ela disse que foi dormir feliz esperando sua alforria, sua maioridade. Mas ao deitar-se a dor de que sempre fora acometida se tornou tão forte que achava ela, em delírios, que a morte estava a levando embora. Já na cama não suportava mais o peso do mundo em suas costas. O colchão parecia, em contato com sua pele, como que brasas ardentes de uma fornalha do inferno. Mas de tanto sofrer sucumbiu à dor e apagou seus olhos sofridos de vinte e um anos vividos em tormento. Ao acordar, pela primeira vez em sua vida levantou sem dor alguma. Estranhou muito tudo aquilo. A dor sumira, mas algo estava ainda pesando em suas costas. Foi quando ao se deparar nua em frente ao espelho notou grandes asas brancas saindo como que por mágica atrás de si mesma. Das sua costas. Não acreditava no que via e no que estava acontecendo. Mas se sentia imensamente feliz com aquilo tudo. Sua asas eram feitas de carne e ossos cobertas de penas alvas e amáveis. Sensíveis e macias.
E o que eu vi de cima de meu muro foi a imagem de um anjo lindo, saindo voando de sua janela em direção ao céu, em direção à liberdade. Com suas asas brancas douradas pela luz do sol radiante daquele dia feliz.



GATO LARANJA
29/03/2008

O Sonho de Mirella

Estava ela na praia, à luz do sol. Do mar reluzia um cheiro de rosas, todos à sua volta sentiam essa brisa de flores ressabiados e deitados em cadeiras de vime já não encontradas em nossos verões modernos. O perfume das rosas, apesar de inóspito não mexia com os pensamentos de Mirella e sim o calor da estrela maior bronzeando seu corpo lindo escultural, morena à brasileira, violão de mulher.
Quando não em segundos de relógio o sol lindo se degradava atrás de algo que não era uma nuvem noroeste, nem frente fria vinda do sul. O céu escurece de repente. Então é que sua visão pensa estar a ludibriando, mas não! Uma grande onda se ergue no mar. Sim, á ela! É ela que escurece a luz do dia, o sol desaparece atrás da onda. Navios e barcos à deriva de suas escolhas capitãs e âncoras viram meros brinquedos pequeninos pelo vulto da onda. O horizonte desaparece em uma imensa vaca precípta.
Um barulho estrondoso que se ouvia desde a praia até o centro da cidade tomava conta de ouvidos avisados ou não pela imagem da catástrofe. Os passos largos de suas lânguidas e esculturais pernas correndo muito não a livravam da hecatombe da vaca se fechando em sua cabeça, em cima das pessoas e de sua cidade.
Quando sua mãe sentada ao pé de sua cama repete insistentemente:
- Não vai ao trabalho hoje minha filha? Já são horas!
A imagem de sua bronca mãe chega a ser uma luz num túnel escuro, tamanho o pesadelo passado. Seu café com leite ainda sem açúcar parece doce à lembrança do pesadelo ainda vivo em sua memória sonolenta. Pela décima vez este sonho ainda a persegue. Nunca tivera sonhos relevantes antes. Mas ser engolida junto aos seus não era apenas um pesadelo, e sim o sonho mais apavorante que Mirella já tivera.
“E se repete, por quê?” Num pensamento perdido no ônibus o questionar do inverossímil a põe de joelhos em sua praia de fantasias.
Ao chegar à empresa, seus pensamentos se misturam e se esvaem numa confusão de compromissos e pendências anteriores de seu trabalho. O dia passa lento interminável à pressa de suas tarefas profissionais. Ao demorar o poente do tempo irremediável do relógio girando em seu descanso de tela, voltam em suas questões pessoais a onda e sua hecatombe fantasmagórica.
“Que raios de sonho é esse?”
Ao chegar em sua casa depara-se com uma cena comum e costumeira de seu pai Antonio sentado ao sofá lá pela décima cachaça do bar da esquina lhe rogando: “Deus lhe abençoe minha filha! Como foi seu dia?” Como se tal pergunta tivesse importância aos dois, ela cansada pensativa e ele embriagado de seu trabalho e sua cana costumeira, diária. Ignorou-o como de costume. Dona Viviane ainda na cozinha ao sentir a entrada triste de sua filha bradava:
- Venha comer minha filha, vai esfriar!
- Boa noite mãe. – respondia Mirella ainda pensativa e agora chateada com seu cotidiano besta. – Já vou, vou me lavar antes!
O barulho insosso da água da torneira do banheiro nem de longe lembrava sua praia de pesadelos. Mas a remetia ao medo do afogamento inevitável de sua onda. Afogamento este que em seu sonho nunca chegara a findar-se, pois sempre acordava antes de sua eminente morte surreal.
Arroz, feijão do almoço requentado, ovos estralados e batatas fritas. Era como se Dona Viviane sentisse seu desejo de sentir-se em casa ao menos uma vez em seu próprio lar sem graça, amor.
Ao deitar-se Mirella vivia a angústia de um náufrago esperando sem colete e bote salva vidas seu barco afundar. Mas tamanho o cansaço que seus olhos apagavam-se antes da luz de seu telefone transformado por ela segundos antes em despertador. E num estridente barulho de musiquinha de celular modernoso, entende, sente e agradece por mais uma noite sem praia, sem barulho de uma vaca imensa e sem ondas de afogamento em seu sono de trabalhadora infeliz. O cheiro do café de sua mãe indica o começo de um novo dia e a anti-presença de seu pai que madrugava para o trabalho. Sem beijos e sem bom dia minha filha.
O ônibus, a mesa e o computador a fazem esquecer de anteontem e seu sonho mortal. Volta a sentir-se bem. Ao menos longe de casa. Assim entorpece sua alma e sua vida em obrigações, prazos, broncas dadas e recebidas, profissionais competentes e incompetentes à sua volta, viajando em sua nau empresa. Esta sim, navegando em mares calmos diante dos marinheiros ultra-atarefados. Seu computador e sua colega de trabalho avisam que é hora de voltar ao nu da vida crua. É hora de ir embora.
Vontade de chegar em casa depois dos dezoito anos completos ela nunca teve. Ambições de morar sozinha passavam longe de sua realidade assalarial e de sua vida triste. Odiava sua casa, ou seu lar. Teve dezenas de vontade que seu ônibus de volta vivesse em voltas intermináveis. Rodando a esmo sem nunca parar no ponto perto de sua rua.
Ao deparar desta vez, como em algumas outras a ausência de seu pai no sofá. Sabia que o destino de sua hora seria o mesmo do pedido vindo da cozinha sob a voz de sua mãe:
- Vá chamá-lo no bar minha filha! Ele deve ter esquecido o relógio!
- E desde quando ele olha para o relógio a não ser para ir ao trabalho!
Saiu de casa a caminho do bar da esquina com um sentimento rês na forquilha abatedoura. Odiava tudo aquilo. Odiava seu pai. Odiava o bar. Odiava tudo. Não precisou chegar à fatídica esquina e encontrou o velho jogado na sarjeta como um andante bêbado.
- Pai, levanta, vamos pra casa! A mãe tá preocupada!
- Boa noite minha filha! Como foi seu dia? – sussurrou alcoolicamente o velho como se em seu sofá estivesse deitado, e não em cima da vergonha de sua família e da alma de Mirella.
- Levanta pai!
O arrasto do velho até o terceiro andar de um prédio sem elevador foi trabalho herculano. Mas o ódio e a lucidez de Mirella a fizeram encontrar forças dentro de si, que nem a vizinha à porta assistindo a cena avassalou sua determinação. Ainda que sua vontade real fosse de subir e jogar o velho lá de cima pela janela. À casa sua mãe fazia de conta de que nada anormal estava ocorrendo. Pois era verdade. Quantas vezes a filha já não arrastou o pai para casa? De anormal nada tinha o ato de força exterior e interior da filha. Mas o normal era mesmo o mal-agradecimento e as injúrias paternas na hora do chuveiro de bêbado que a mãe providenciava nessas ocasiões.
Mirella desta, como doutras vezes, deitou-se sem comer. Ajustou o celular e adormeceu. Já em sua praia de vimes e odores de rosas, pensando em seu bronzeado lindo e seu corpo de desejos masculinos. O céu se escureceu novamente, barcos ficaram à deriva da sorte outra vez e o estrondo foi maior que dos outros pesadelos. E num relance de fúria e coragem, vendo as pessoas correrem da morte inevitável, ela parou e olhou para dentro da vaca gigantesca vindo em sua direção e não correu. Esperou sua hora encarando seu destino de afogada. Esperou e foi engolida pela natureza mortal da onda. Respirou fundo e no instante em que sentia ser arrastada pela força da natureza e sua crueldade tissunâmica, sentiu penetrar em seu ser o odor das rosas e por alguns segundos mergulhada no fundo de uma mar azul esperando sua morte. Enxergou seu pai anos antes sorrindo sem estar embriagado a esperando voltar da escola no portão de sua casa com um beijo enorme em seus desejos, viu sua mãe feliz regando os vasos de planta e assoviando velhas canções dos anos sessenta, com abraços e apertos de espera de sua filhinha que chegava feliz. Sentiu o ar acabando e a água entrando em seus pulmões lentamente com sua fragrância rósea. Viu ainda uma foto sua e de sua falecida juvenil irmã abraçadas em uma casa vendida anos antes. Sentiu seu último olhar levado pela onda gigante à um tempo em que sua vida nunca mais a deixou pensar e lembrar. Deu um beijo na sua mãe, um abraço bem apertado em seu pai e fechou seus olhos azuis e grandes de afogada. Seguiu seu destino de concha no fundo do mar e morreu.
Não acordou mais, não foi trabalhar e foi feliz em paz no mar de suas lembranças passadas. Mesmo com sua mãe tentando dizer que estava atrasada!



GATO LARANJA
19-03-2008



Um Set na alma humana

Vida de aposentado já foi mais difícil, não digo neste país apenas, mas minha vivência de gato mostra que hoje meus amigos bichanos de senhoras na melhor idade estão ficando mais sós em casa do que nunca.
Já foi o tempo em que velhinha ficava em casa cuidando do gato e regando samambaias entre um remedinho e outro. Mas também não foram as aposentadorias que aumentaram de valor e sim as opções de lazer e a busca por coisas mais interessantes pra fazer do que resmungar em casa e esperar a morte chegar com a sacolinha de remédios nas mãos.
E seu Alfredo é um desses aposentados que não ficam em casa. Viúvo há mais de dez anos, nunca quis uma companheira pra si, pois sente que ainda ama sua esposa onde quer que ela esteja. Mas aproveita o tempo em várias atividades.
Faz ginástica, dança de salão. Gosta de ver seu coringão jogar na padaria da esquina de sua casa. Mesmo em jogos noturnos. Internet então, depois que descobriu, só para depois das duas da manhã.
Mas uma dessas atividades de seu Alfredo, e uma das que mais gosta é um pouco estranha, perdoada toda mania estranha de velho. Eles podem, tem direitos adquiridos pela idade de serem estranhos e diferentes, como uma aposentadoria de restrições sociais.
Voltando a mania diferente de seu Alfredo. Ele todo sábado vai ao clube de campo assistir jogos de tênis. Geralmente garotos adolescentes que se matam e suam sozinhos em seus respectivos lados atrás de uma bolinha amarela com uma raquete em punho.
Seu Alfredo gosta de ver mesmo o empenho dos meninos solitários em seu jogo. Ele nunca soube e nunca se perguntou direito as regras do jogo. Nem se interessa por isso realmente. Mas de tanto assistir jogos entende que as partidas são divididas em sets. Contados de uma forma em quem faz seis pontos ganha um set, com oportunidades de saques contados em pontuação que nunca entendeu, mas iguais para cada lado dos jogadores.
E o que ele entende bem mesmo é que o tênis é um esporte solitário, assim como ele. Cada qual com seu jogo e sua vida. Um esporte de concentração e que só é vencido jogada por jogada. Sem pensar no futuro e sim no que está acontecendo agora neste instante em quadra. Como sua vida de aposentado e viúvo.
Gustavo por sua vez é um menino bom, toca guitarra, estuda num bom colégio e ama sua namorada. Mas sua paixão mesmo é o tênis. Joga bem, tem um saque forte e preciso. Seu jogo de fundo de quadra é impressionante para um garoto de dezesseis anos. Pancada de gente grande na bola.
E todo sábado está lá na quadra do clube jogando muito e vários sets com seus amigos. E nunca deixa de notar aquele torcedor idoso sempre presente, que com o tempo, até troca algumas palavras como “bom dia”, “tudo bem com o senhor?”, “gostou do jogo”. A resposta de seu Alfredo é sempre cordial e maneada por sins e ótimo. Seu Alfredo é um senhor gentil.
Com o tempo Gustavo tornou-se o jogador predileto do nosso idoso torcedor. Não por seu jogo bem colocado e agressivo. Mas pela sua falta de equilíbrio emocional e concentração nas bolas, pelas raquetes lançadas ao solo em pontos perdidos, pelos auto xingamentos a que se impunha o moleque ao errar jogadas fáceis. Isso o faz lembrar de sua juventude, de seus destemperos infantis. De um tempo em que os hormônios estão contra nosso pensamento equilibrado e nossa concentração ao derredor cotidiano.
E Gustavo, às vezes mesmo jogando bem e tendo uma pegada mais forte que seus habituais oponentes, vive perdendo jogos. Seu Alfredo que não entende nada de tênis sabe o porquê. A falta de equilíbrio emocional do garoto, o destempero a que o faz senil e feliz recordar de sua juventude.
O garoto não entende como pode ser o jogador mais aplaudido do velho em ótimos lances, se, às vezes, no fim do set, perde o jogo.
Gustavo, repito não é um mal garoto, mas é vitima do destempero juvenil. Que ao observá-lo em quadra, rememora seu Alfredo de um passado longínquo e tempera seus sábados solitários de torcedor.
O menino sempre ao observar seu torcedor fã, queria poder ter a paciência e o controle emocional contidos no sorriso do velho. Poder ter aquela pose de quem já conquistou o mundo e é feliz nas lembranças de suas navegações pelos mares da vida
E seu Alfredo gostaria muito de, ao observar o jogo duro e solitário do menino, ter novamente dezesseis anos e com sua sabedoria jogar tênis aos sábados.
Mas Deus dá asas e raquetes nas mãos de todos em nossa vida. E o Ele que não nos conta divinamente em Sua sabedoria onipresente é a receita do conhecimento, da sabedoria e do equilíbrio para que quando entrarmos nas quadras da vida e jogarmos os sets da alma não desperdicemos nosso tempo, nossa vida e nosso melhor jogo.




GATO LARANJA
15-03-08

O trabalho simplifica o homem

Quem não quer ficar rico?
Raramente alguém responderá esta pergunta com uma negação, obviamente àqueles que já o forem. Lembrando que tem ricos que querem ficar cada dia mais ricos e diriam sim à minha simples pergunta.
E este era o sonho de Antônio Carlos. Como o de muitos outros por esse Brasil. Mas a realidade dele, seu cotidiano o levava sempre ao mesmo dilema: trabalhando eu não fico!
Não que nosso amigo Antônio Carlos não gostasse de trabalhar, muito pelo contrário, ele era esforçado e gostava do que fazia. Tinha verdadeira paixão pelo seu ofício: professor de história.
Dava aulas em duas universidades e um curso preparatório para concursos.
Seus alunos, não conseguiam tirar o olho de suas aulas. A paixão era tanta que as pessoas menos avisadas sobre o que estava sendo dito, sentiam-se num comício eleitoral. Tamanho furor, tamanha capacidade e dedicação, garra e euforia do mestre. Tamanho carisma.
Mas esta empolgação toda se esgotava logo que ele, tarde da noite chegava em casa e deparava com um apartamento simples, móveis velhos e rústicos, uma luz queimada no banheiro que nunca era trocada por falta de tempo e sua geladeira quase vazia.
Comia uma maçã e deitava em sua cama dura, colchão velho, presente de sua avó ainda em tempo de faculdade.
Lia sempre algo, de preferência autores romancistas e cronistas. Vida dura, simples. Urbana.
Acordava muito cedo, pois dependia de um ônibus que passava a cada duas horas em sua rua, o de número treze e se perdesse ele chegaria pelo menos duas horas atrasado, coisa que nunca acontecera em sua vida profissional.
Depois um metrô para chegar ao seu primeiro emprego, uma faculdade em que dava aulas para a cadeira a que fora formado: história.
Seu desânimo acabava ali na entrada da sala de aula, junto com a digestão de seu café com leite, pão e margarina tomados horas antes.
Começava a falar, fazia a chamada rapidamente, pedia para os desinteressados que saíssem antes de sua aula do dia e começava seu discurso, preparado há anos, para seu dia-a-dia de aulas, mas com o mesmo entusiasmo da primeira vez.
Uma coisa interessante era que ninguém saía de sua aula, nem para fumar ou ir ao banheiro. Ficavam todos ali, olhos atentos, interessados naquela magnífica aula.
E assim passava sua manhã. Almoçava no refeitório dos professores e pegava mais dois ônibus para sua segunda jornada.
Sempre, mas sempre mesmo, pensava em desistir daquilo tudo. Mas ao décimo arroto de sua refeição estava ele novamente empolgado e empolgando na sala de aula num curso de direito vespertino.
Seus alunos sentiam-se privilegiados por terem ele como professor daquele curso.
Saía para sua terceira jornada feliz, com uma maçã nas mãos e sentindo que só mais duas horas e acabariam suas aulas e seu cansaço. Ledo engano.
Duas horas depois, terceira jornada cumprida e seu cansaço aumentava. Pensava na volta pra casa. Dentro do ônibus lembrava dos tempos da faculdade e dos sonhos.
Lembrava de que tinha a intenção de escrever a história em livros, mestrados. Dialéticas avançadas e pesquisas. Mas tudo ficou para trás, tudo ficou na necessidade de sobreviver e pagar suas contas e o aluguel.
Abro um aparte meu caro leitor para dizer algo que tenho travado em minha garganta há anos, mesmo sendo eu um gato e nunca ter sido um mestre em nada: Como professor ganha mal neste país!
A melancolia de sua chegada em casa se repetia diariamente, ao ir ao banheiro já estava acostumado a tatear no escuro para tomar banho e escovar os dentes. Jantava a sobra do jantar da noite anterior ou outra maçã.
Até que certo dia, num desses jantares de sobra de comida de ontem, a luz do banheiro acendeu sozinha como por mágica. Levou um susto muito grande. Deixou que o prato simples de feijão e arroz sem mistura caísse no chão. A televisão desligou. Teve muito medo simplesmente.
Foi ao banheiro, olhou para todos os lados, nada viu de diferente senão aquela luz antes queimada, agora nova.
Limpou a sujeira de seu jantar interrompido e foi para cama.
E pela primeira vez em anos, rezou. Fechou os olhos e dormiu.
Sua rotina se repetiu vários dias, mas sempre ao retornar para casa, a primeira coisa que fazia era ir ao banheiro. Conferia a luz, que sempre funcionava.
Tomava banho, jantava vendo televisão e dormia. Mas agora sempre rezava, pedia que Deus o protegesse de algo que não sabia o quê, mas o incomodava muito.
Meses se passaram, até que um dia já indo dormir, ouviu uma voz vinda do banheiro. Nem pensou duas vezes e deitou-se na cama. Rezou muito.
Não consegui pregar os olhos, virava de um lado para o outro, esperava algum outro som que não fosse o trânsito quase nulo de sua rua, de seu ventilador de teto ou do ar condicionado de seu vizinho de cima, e nada.
Levantou da cama sem dormir, foi ao banheiro devagar, com um medo juvenil, e nada encontrou.
Pronto sua rotina estava estabelecida de novo. Só que com um porém: Não conseguia se concentrar na aula, estava sonolento e seus alunos o perceberam assim.
Perguntavam se algo estava errado com ele, se estava doente. Mas a resposta era a mesma: uma indigestão noturna que não o deixou dormir direito e ainda doía muito.
Sabia que se falasse a verdade seria motivo de chacota de seus alunos. Nem ele acreditava direito no que estava acontecendo.
Mas entrou em casa desta vez receoso e não foi, como de costume, conferir a luz do banheiro, não tomou banho e nem escovou os dentes. Foi para cama direto, sem televisão, sem jantar. E rezou.
Num instante de pausa entre suas orações e insônias ouviu novamente a voz vinda do banheiro, e desta vez entendeu o que a voz dizia: “Antônio, venha cá”.
Pergunte-me se ele foi. Vamos, pergunte-me.
Que nada, entrou embaixo de seu travesseiro, se enrolou todo nos lençóis e pedia a Deus misericórdia pela sua vida, sua ganância em querer ser rico, pela sua falta de apego nas coisas poucas e boas que conquistara, pela profissão a que amava mas não dava o valor que merecia por ganhar mal e num instante pensou: “Gosto do que faço, e o faço bem meu Senhor!”
A noite foi passando entre pedidos de misericórdia, perdão e medo de Antônio Carlos. Este certo que Deus o ouvia ali, entocado em seus lençóis e travesseiro. Com muito medo.
Amanheceu o dia e pela primeira vez em treze anos não foi trabalhar. O telefone tocava, mas ele não atendia. Eram os colegas de trabalho preocupados com sua ausência e ele sabia disso.
A luz do dia começou a adentrar seu apartamento pelas frestas da janela de seu quarto.
Pegou a primeira roupa que estava à mão e saiu para a rua, tomou seu café na padaria da esquina com medo das pessoas. Estas que o olhavam cheios de receio pela sua face pálida e seu semblante de louco. Insone.
Ao sair da padaria viu um pacote de notas de cinqüenta reais no meio fio, nem pensou duas vezes e se lançou sobre ele no mesmo instante em que ouviu um grande ranger de pneus e sua vida acabou embaixo do ônibus de número treze, o outro de duas horas após o seu de costume diário há treze anos.



Gato Laranja
13/03/2008

Momentos em que os filhos não mandam (Uma Fábula)

Chega a ser improvável esta frase título de meu conto, pois na vida de um casal humano, os filhos sempre mandam mesmo ainda na barriga de suas mães, e olha que sou gato e nunca conheci minha mãe, mas entendo o que ela deve ter passado comigo nos meus primeiros miados.
E uma mãe de gato, tem vários pais para seus filhotes, diferentemente dos humanos. Que só geram um filho por vez. Naturalmente seria assim. Mas me contaram certa vez num muro de minhas noites que uma mulher humana teve três filhos de uma só vez, talvez fosse ela uma felina disfarçada e não sabia.
Mas vamos a nossa história. A história que para você humano poderia até ser a sua.
Havia numa terra distante daqui um casal, um rei e uma rainha para ser mais exato, que decidiram coisas diferentes do que pessoas de sangue nobre, e no poder, normalmente nunca cogitam. O fim da monarquia em seu país. Esta decisão foi acertada ao fogo de sua paixão de adolescentes, mesmo sendo eles na época adultos e conscientes do que faziam:
- não quero mais a monarquia - dizia ela - pois o reinado de meu pai e minha mãe fora injusto com seu povo.
- pois é, nunca havia pensado nisso, até que em meu país a justiça imperava, mas haviam torturas, repressão e determinações ditatoriais de meus pais, que eu nunca concordei – replicou ele se dando conta de uma realidade de sua vida, mas que nunca o impediu de se sentir príncipe.
Mas o acaso veio, e seus sangues nobres em comum os levou a casar, para que pudessem dar continuidade ao novo reino já estabelecido por Deus e pelas monarquias ancestrais de sua árvore genealógica.
E durante a convivência deste casamento nobre, esta idéia pairou no ar e na cabeça daqueles ex-príncipes e agora monarcas absolutos de seus reinos.
Agora vamos falar de uma coisa, caro leitor, casamentos de príncipes e princesas são convenientes, silentes e nunca feitos por amor e sim jogadas políticas.
E eles sabiam disso, mas fizeram com que a convivência os aproximasse, tentaram a paixão, que deu certo. E a certa altura o amor, de tantas tentativas, nasceu. Mas era um amor de tentativas, sem olho no olho.
E suas idéias democráticas, nunca amadureceram, mas eram sempre lembradas no momento em que os dois inadvertidamente iam pra cama, faziam amor e pensavam no futuro, junto a fumaça de seus cigarros de fumo nobre e selvagem cultivados na África.
- como faríamos para esta monarquia aqui ser diferente? – perguntava ele, sabendo a solução.
- não teremos herdeiros. – replicava ela, sem a menor dúvida de que esta seria a única solução, para que seu povo pudesse escolher seu futuro pelas próprias mãos e suas idéias democráticas pudessem contrariar o destino nobre a que foram submetidos.
O tempo foi passando, e o que era uma idéia, se tornou uma convicção mútua.
Seus conselheiros, quando avisados por pessoas próximas ao rei e por donzelas de companhia da rainha, achavam a idéia um absurdo. Mas nada podiam fazem contra a vontade, a decisão de seus monarcas.
Mas numa bela tarde, a rainha começou a ter dores, médicos foram chamados, curas milagrosas não resolviam. Curandeiros de outras etnias aconselhavam, faziam sortilégios e nada resolvia. Até que uma conselheira idosa do casal. Uma anciã do reino sentenciou: “ a rainha está grávida!”
Eles não acreditaram no que a anciã disse e imediatamente mandaram enforcá-la em praça pública. Imitando neste gesto o poder de seus antigos reis, seus pais.
O tempo foi passando, o corpo da anciã já não era mais exibido ao povo pendurado em sua forca, mas a sentença da mesma se confirmou.
Entraram os dois monarcas em desespero, sua revolução democrática estava perdida, ela não queria aquele filho e ele começou depois de contrariadas todas as suas convicções pessoais a gostar da idéia.
E num casal nobre, em que tudo, apesar das conveniências dava certo, começaram os desentendimentos.
A gravidez, irritava e aturdia a rainha a certo modo, que apesar de sua resignação ao fato, e de sua busca de entendimento com o Divino, ela se sentia confusa com tudo aquilo.
O rei, em sua posição, não cético, mas esperançoso, sonhava com uma princesa bela, uma linda donzela que pudesse levar seus ideais para frente, sendo ela mulher e ele o rei a quem a introduziria em seus ideais democráticos no futuro.
E aí veio o grande afastamento entre os monarcas, ela por sua vez, sentindo todo o peso físico de sua gravidez e o fardo de ser o que nunca quis futuramente, esqueceu-se do rei em seu coração. E do povo em sua aflição.
Ele, ao ver sua linda rainha fisicamente mudar, suas idéias entraram em parafuso. Mas não fora só isso que o rei sentira e sim a presença de um futuro melhor, diferente do que eles juntos haviam planejado como o melhor antes da gravidez real.
O povo rejubilava com as notícias de que tudo corria bem no ventre da rainha, mas não entendia porque o rei se tornara um político tão sórdido quanto a seu pai, o antecessor.
Ele concentrava suas forças no preparo de um reinado futuro de uma princesa democrata com mãos de ferro e subjugo das vontades e necessidades de seu povo. Mesmo ele sem saber se seria seu herdeiro homem ou mulher, pois em seus sonhos e suas idéias a democracia só se tornaria real se nascesse daquele ventre nobre uma princesa, e ele pai, não daria dote algum a príncipe nenhum por política, conveniência ou resoluções absolutistas.
Mas ele se tornou com aquela mudança um absolutista, e a rainha se afastava dele na medida em que seu ventre crescia e ele governava, perdido com sua vida pessoal, com injustiças e mãos de ferro.
O abismo entre os dois estava ficando tão grande, que perto ao nascer o fruto do amor deles, eles não se falavam, não se entendiam e muito menos se davam apoio para enfrentar a mudança em que o reino estava se submetendo.
O povo esperava a notícia do nascimento com festa. Pois o mesmo povo não residia no castelo e nem dormia na cama real.
E como o rei sonhara, nasceu uma menina linda, de olhar atento, uma fome do mundo e de leite maiores que suas dores, que fora pelo rei, sem dada escolha a rainha batizada de Maria.
E no desentendimento dos monarcas, nas festas em que o povo fazia sem se dar conta de sua fome e necessidade, veio uma notícia inédita nos castelos medievais do mundo todo. O rei e a rainha se separaram de fato.
A rainha ficou com o povo, o castelo, com a solidão e perdida. Onde por aí maus conselheiros começaram a roubar o poder de suas mãos.
O rei fugiu para a floresta negra de seu reino, se escondeu de sua realidade e seu sonho democrático para poder pensar e agir.
Em suas tentativas de ver sua princesa Maria, poucas vezes obtivera sucesso, pois abdicara de seu trono em busca de um ideal democrático e de um sonho em que só a presença viva de Maria em seu coração e sua vida seria possível. Mesmo ele escondido na floresta.
Seus correligionários e pessoas próximas que abraçavam sua idéia de justiça estavam sempre a seu lado. Seu pai veio de longe apóia-lo em sua decisão de dar poder ao povo. Sua mãe, rainha distante se comprometera a negociar junto ao novo monarca, pai da antiga rainha e avô de Maria as idéias democráticas do filho.
Nunca em momento algum chegaram a um acordo, e o povo pereceu a tudo. Passava cada dia mais fome, mais desesperança, cabeças rolaram em guilhotinas, enforcamentos se tornaram a principal forma de diversão ao pobres e a injustiça imperou no reino.
E a única coisa que pairava sobre toda essa temeridade fora o sorriso sempre angelical e feliz da princesa Maria que resistia a essa batalha política com flores, amor e uma alegria de viver fora do comum.
E foi quando Maria, na flor de sua juventude, abraçou os ideais do pai, e se lançou a floresta que já não negra, estava toda florida e cheia de vida, bondade e fadas de bom coração.
Sua mãe desesperou e declarou guerra aos habitantes da floresta. Foram anos de sangrentas batalhas e mortes inocentes em que a única coisa que fazia com que o coração do antigo rei e pai de Maria se alegrasse era, ao chegar em casa com seu elmo entreaberto e sua espada suja de sangue, receber o abraço, o sorriso e o amor de Maria.
Mas a princesa também sofria em seu interior e seu coração se amargurava com a insensibilidade de sua mãe rainha absolutista. Maria se tornara uma democrata igualmente ao pai.
E ao fazer vinte e um anos Maria pôde finalmente reivindicar o trono. O fez de uma forma tão sensata e feliz. Que ao dia seguinte renunciou ao reino. Estabeleceu eleições onde todos votaram, trouxe seu pai a seu lado e foi feliz. Realizando seu próprio sonho, o de seu pai e acalmando o coração de sua mãe, sempre e também muito amada por ela.
As guerras acabaram, e a vida tornou-se mais justa para o reino.
E todos foram felizes para sempre!



... GATO LARANJA ...
10/03/2008

O Cavalheiro e a Vagabunda

Pode parecer ironia do destino, ou até como dizem por aí, coincidência. Mas Carlos conheceu Lucy em seu trabalho. De uma forma como conhecia tantas outras pessoas diariamente.
Ele, advogado em começo de carreira, trabalhando arduamente no período da manhã em um escritório em que vinte e tantos outros advogados como ele se digladiavam pelos poucos míseros cientes que apareciam vez ou outra. No período da tarde, mal almoçava e corria para a Defensoria Pública, onde atendia pessoas que não tinham condições de pagar por consultoria jurídica, ou mesmo processos a serem tramitados.
Como já se sabe, neste tipo de lugar é onde as pessoas humildes e principalmente pobres recorrem a advogados em busca de auxílio, consolo e também soluções para seus problemas judiciais.
Carlos tinha a sensação real de que trabalhava muito e ganhava pouco. Mas na realidade era o contrário, ele ganhava pouco para muito trabalhar. Mas isto, vamos e venhamos leitor, não é só com o Carlos que acontece neste país. E não é só privilégio de advogado em começo de carreira.
O que ele nunca esperou que acontecesse ali, naquele ambiente burocrático, cercadas de pessoas cultas e estudadas dando e buscando soluções a problemas de pessoas simples que seu coração fosse como que lhe arrancado do peito.
Ele tinha mais do que uma namorada, ele tinha um compromisso sério, tinha uma noiva. Mas o destino, ah!... O destino.
Sempre tivera certeza em seu coração e em seu noivado namoro de quase oito anos que ela era tudo o que sempre sonhara.
Uma moça inteligente e bonita, esforçada estudante de medicina, uma família que o considerava já como que um filho, uma dedicação mútua e incondicional na paixão, no dia-a-dia, no amor e no sexo.
Mas quando Lucy sentou-se pela primeira vez em sua mesa na sala da Defensoria, algo em seu âmago mudara na hora. Ele, sempre cético, perspicaz, audacioso, melindroso e preparado para qualquer pergunta, como que sendo a confirmação de sua vocação para o Direito Civil. Ouvindo as queixas de uma mulher simples, sentiu seu coração se partir. Coisa estranha para seu entendimento do Direito e o do que é ser um homem direito.
Ela falava sobre seu problema de trabalho com uma pessoa que, se entendendo seu patrão de fato, não conseguia se desvincular dele. Pessoalmente e profissionalmente. Ao caso de até ter apanhado deste por tal tentativa.
Mas Carlos só prestava atenção em seus lábios doces, sua voz meiga e seu sorriso encantador. As palavras saiam da boca dela como que um canto de anjos ao raiar do dia. Não conseguiu prestar atenção em nada do que dissera a moça, ao ponto de pedir com uma gentileza incomum a ele, que ela repetisse suas queixas. E aí a ficha caiu sobre as queixas da rapariga.
Ela apanhava de seu cafetão, pois era prostituta de rua, tinha residência fixa, mas não conseguia se livrar daquele aproveitador de meretrizes mal amadas assim como ela.
Neste exato momento, concentrou-se no caso simplesmente, ouviu e deu suas opiniões. Marcando um outro dia para que pudesse estudar melhor a situação deprimente dela e aí sim, tentar esboçar um processo ou coisa que valha.
Nesta mesma tarde atendeu outras pessoas, e ao se pegar pensando em Lucy, vez ou outra, perdia sua linha de raciocínio e a razão daquilo ser verdade em sua alma. Sentiu-se como que numa bolha de vidro o dia todo, com um pensamento perdido e confuso.
Ao chegar em casa, deparou-se com uma surpresa preparada por sua noiva. Um jantar a luz de velas, uma cama cheia de pétalas de rosas e uma moça magnífica numa lingerie preta. Roberta adorava surpreender seu noivo com coisas deste tipo.
Mal jantaram, e estavam se amando, aos beijos e preliminares intermináveis, mas na hora em que estava gozando mesmo se pegou transando com Roberta e pensando em Lucy.
Fingiu que nada estava acontecendo, mas naquele quarto escuro de seu apartamento simples, deitado na cama com uma mulher esplendida ao seu peito sonhando e dormindo angelicalmente, estava insone, pensando onde estaria Lucy naquele momento? Onde ela estava em seu peito? Que por mais que tentasse, não conseguia dormir com um certo ar de culpa de tudo o que estava lhe incomodando. Não podia estar acontecendo aquilo com ele. Não com ele.
Os dias se passaram como que se vinte e quatro horas fossem quarenta, nas noites quentes de amor com Roberta só conseguia prosseguir se pensasse em Lucy. E isto sim o incomodava. Mas o tempo não passava. Aquele dia marcado para a conclusão do ato jurídico da moça de rua não chegava nunca.
Mas este dia chegou. Levantou cedo, foi para o escritório, contava as horas e nem almoçou foi direto para a Defensoria.
Ao notar Lucy entrando no salão de advogados públicos, reparou que seu sorriso estava manchado por um inchaço, conseqüência de alguma briga ou golpe que a moça levara. O coração dele encheu-se de ira, mas acalmou-se quando a moça sentou, o cumprimentou e sorriu um sorriso dolorido, mas ainda doce.
Ele fingiu que nada acontecia, seguiu todos os protocolos, averiguou informações sobre o problema dela até que ela, sem nenhuma maldade, perguntou:
- Você tem namorada, esposa?
Carlos perdeu os sentidos por alguns meio segundos e respondeu que sim. Era noivo, iria se casar ao término da graduação da noiva.
Neste instante o sorriso de Lucy como por mágica desapareceu, mudou de postura em sua cadeira de ‘cliente’ e voltou ao assunto do cafetão com a maior naturalidade.
Tal atitude reduziu Carlos a nada por dentro. “Porque dissera a verdade? Não poderia ele simplesmente ter sido mais advogado que humano e mentido?”
Ao término da reunião, ela saiu, mas antes deu a volta na mesa, aproximou-se dele e lhe deu um beijo no rosto. Virou-se e foi embora, com a promessa de voltar na próxima semana para assinar procurações e o início do processo.
Carlos sentiu uma vontade louca de sair correndo atrás da moça e lhe dizer o que sentia por ela. Mas o que sentia ele? Desejo? O que dizer?
Ficou imóvel com a sensação maravilhosa daquele beijo em seu rosto.
Foi o que bastou para a semana não passar novamente, nem os amigos, o futebol, o sexo, o vinho, nada fazia sentido. Sentia-se um viciado que só pensava em sua droga. Seu anjo, sua prostituta, seu amor.
O tempo não passava, mas a conjugação verbal muda e o tempo passou e ela não veio.
Aflito seria pouco para descrevê-lo ao notar que ela além de se atrasar, não viria, como não veio mesmo para assinar os papéis do processo.
Amigo leitor, nem preciso falar aqui sobre a vertigem, sobre a dor e a insegurança que ele sentiu, pois imagino que todos que amaram, pelo menos uma vez na vida já passaram por essa situação de perda do que não tem. E isto é pior do que se perder o que se tem.
Saiu do escritório público direto para o centro da cidade, esqueceu-se de ir para casa e ficou vagando pela noite com seu paletó nas costas pela zona de meretrício em busca dela, seu anjo do mal. Seu amor prostituído.
Mas isso, o fato de ela ser prostituta já nem o incomodava mais. Ele apenas a queria e para sempre.
Avistou de longe uma mulher apanhando muito de um homem grande e forte, e como o destino é cruel às vezes. Viu que a mulher era Lucy.
Correu para apartar a acabou apanhando junto com ela, no mesmo instante em que a polícia chegou, enquadrou e levou os três para delegacia. Num lance cinematográfico o cafetão fugiu e sobrou só para os dois pombinhos.
Ao sentarem-se os no banco da sala do escrivão, atados na mesma algema, Carlos olhou para Lucy, e ao receber o retorno deste olhar dela, disseram em uníssono: “Eu te amo!”
E foi assim a forma em que algemados literalmente, algemaram-se duas almas distintas, na vida e na sorte, em profundo amor para sempre. O cavalheiro advogado e a vagabunda prostituta.





... GATO LARANJA...
04/03/08

Uma Fada de um Conto Real

A historia que vou contar aqui, nem eu acredito direito, pois não sou cético de um todo, mas não acredito em fadas e coisas do tipo, seres super-fantásticos então me fazem rir. Mas uma coisa do que você leitor vai saber é que aconteceu de verdade. E que apesar de tudo esta fada, no sentido literal da palavra, existe. Ela vive ainda e sobrevive as maldades de um mundo sem fé e com crenças absurdas e preconceituosas em que vivemos.
Você pode, se acreditar em conto de fadas e duendes em arco-íris e potes de ouro, parar de ler aqui. E se pretende ver mais um Harry Potter da terra do nunca, esqueça.
Ainda, antes de mais nada, se fosse eu contar toda história dela aqui, esta não seria uma crônica e sim um livro, daqueles que ficam em pé na mesa.
A fada da qual falo é uma fada mesmo, dessas que voam, têm varinha de condão, fazem mágicas e adivinham o futuro. Sim literalmente, acredite.
Mas ela veio nascer aqui na Terra, veio para este mundo real por um destino desconhecido. Na sua tenra idade, quando já voava por aí, desejando e atendendo a desejos de seus protegidos (pois fadas têm protegidos, assim como os anjos os têm). Ela se perguntava: porque as coisas eram tão diferentes? Ela voava e seus amiguinhos não. Ela tinha poderes que os outros, além de não entender, não os tinham.
Era uma criança feliz. Fora batizada cristã, mas havia um porém, fadas e anjos já têm seu nome escolhido no antes do astral, por Deus e ela sempre recusou seu nome de batismo, e resolveu aos oito anos de idade que aceitaria o destino e seu nome transcendental e ancestral. Nome de fada vem pronto. E Emmanuele era seu nome.
Conforme o tempo foi passando, e ela foi crescendo, seus poderes foram aumentando, aprendeu a ler o futuro das pessoas e depois o seu próprio.
Foi o começo de uma grande mudança, de uma grande jornada e busca. Decidiu entender melhor sobre nosso mundo real. Pois apesar de viver e ter nascido aqui, no novo mundo, na América do Sul, ela já tinha aprendido que era uma fada e o que isso significava para os humanos.
Mas humanos são falhos, pecadores e mortais. Ao contrário de Emmanuele, imortal. E assim foi fácil entender sobre os perigos que ela corria entre nós.
E de conceitos fincados em nossas almas humanas pecadoras, conceitos formados e pré-fabricados, seria difícil realmente ela ser entendida por este mundo. Tendo o tempo da inquisição passado há muito, ela ainda teve sorte de não ter sido queimada em fogueira. Mas engana-se que o fogo ainda não arde, pois ninguém a entendia. Ninguém a queria reinando em sua beleza e sua magia de bondade aqui na Terra.
Cresceu Emmanuele, a uma vida adulta sem medo, pois seus poderes a defendiam de inquisições e preconceitos. Ainda que a maldade imperasse nos corações humanos que a cercavam.
Mas o fogo ainda ardia à sua espera, sempre.
Tentando levar uma vida humana, amou, foi amada, sofreu desilusões mortais, às vezes desilusões tão humanas que seu coração de fada não conseguia entender, mas se resiguinava ao passar da vida aqui na Terra.
Foi quando a conheci, no auge da desilusão de sua existência. E este auge era como a queda de um precipício.
Ela me confidenciou que poucas pessoas assim como eu podiam enxergá-la por dentro, mas havia se esquecido ou não entendeu que esse poder de ver almas também eu tenho, não sou humano, sou gato. Apenas, da mesma forma que ela, finjo que sou humano. Como ela sempre o fez. Por toda sua existência.
Nossas almas se encaixaram e senti que conheci alguém que sofria o que eu sofri e sofro até hoje. Foi quando ela me fez uma confidência: estava, depois de tanto perecer nas mãos humanas, morando em seus sonhos, atitudes e magias no lado escuro da Lua. Disse-me ela que havia se encontrado na vida, que depois de uma longa conversa com uma Bruxa Negra, viu que seu lugar não era a luz da humanidade e sim as trevas da noite. No escuro do ser na existência da mesma Lua era onde se encontrava consigo mesma. Mas sua alma ainda sofria. Pois era uma fada terrena e por mais que se escondesse, o mundo a encontrava e a maltratava.
Minha afeição e amor por ela foram tão grandes, que logo percebi que ali não era seu lugar. E eu gato escaldado, em cima do telhado, tentava com meus miados à Lua cheia, vê-la na luz. Em vão.
Emmanuele se recusava a ir para a luz do sol que molha a face doce da Lua, apesar de nossa amizade. E foi aí que eu vi que fadas também têm medo, insegurança e sofrem por amor e preconceito sobre seus poderes. Mas isto nós gatos e vocês humanos também o sofrem, não é?
Ficamos bons amigos, chegamos até achar que um gato poderia amar uma fada, e uma fada ser feliz ao lado de um gato. Engano-nos em nossas divagações, eu do meu telhado e ela me mandando vibrações do lado negro da Lua.
Assim Emmanuele, depois de muitos sofrimentos, dúvidas, angústias e magias negras (pois se recusava a seu destino) saiu em busca de si mesma. Perdemos o contato e eu continuei em meu telhado miando para a Lua, pedindo a mesma Lua que a protegesse em sua jornada. Tocando minha vida de gato, minha vida noturna e felina.
Veio-me a informação de que Emmanuele fora para o Velho Mundo, peregrinava em busca de si mesma, de sua bondade e seus velhos hábitos de fada de luz perdidos no tempo e na solidão do preconceito e religiosidade humana latino americana. Passou pela Península Itálica, Nórdica e até na Ibéria foi parar. Buscava assim como aquele velho alquimista seu tesouro, seu encontro consigo mesma, com luz e sua pedra filosofal.
Vez outra a Lua minguante chorava para mim as dores de Emmanuele lá longe e eu miava para que ela a esquivasse do mal, dos homens e da escuridão das almas maldosas.
Passados anos depois desse meu encontro com a Lua minguante, o Sol veio e me disse que ela, através de uma grande perda voltou para a Terra, mais exatamente para sue país, sua terra natal, Sorocaba, que por coincidência foi onde este gato que vos escreve nasceu também.
Voltara com dor no coração, mas desta vez pude a ver num vestido branco de uma seda mágica, angelical e de bem consigo mesma. A fada voltara à luz da qual fora gerada.
E meu último miado que se tem notícia para Lua cheia foi de vê-la, feliz, forte e cheia de luz.
Bem vinda a Terra Emmanuele, bem vinda à luz e conte sempre com este Gato Laranja, pois todos os felinos do mundo regozijaram com a volta de sua magia boa, de seu amor por si mesma e por sentirem em você a real felicidade.
É difícil fingir ser um ser humano, quando nascemos aqui sendo gatos, anjos ou fadas. Mas a luz é o caminho. Você veio da luz.
E assim termina este conto de fadas de um mundo real, se quiser acreditar, isto já não é um problema felino meu, pois as crenças e conceitos formados e enraizados podem ajudar ou atrapalhar nossa existência aqui na Terra.
Mas de qualquer forma todos os seres, sejam fantásticos, animais ou humanos, viemos da mesma Luz, viemos do mesmo Deus.
Abençoada seja sua e a nossa volta aos belos sonhos infantis, de bondade, fadas madrinhas de varinha na mão e soluções mágicas de luz, bondade e complacência.



(para Fê, com carinho)


GATO LARANJA
...07/03/2008...

O chá de Dona Cleide

Dona Cleide nunca fora adepta a eventos sociais. Mesmo depois de casada, preferia programas domésticos a badalações e festas, fossem de amigos, família ou negócios do marido.
Adorava sua vida de dona de casa, mesmo sabendo que sua vocação nunca fora de Amélia.
O tempo foi passando, os filhos crescendo, ficou viúva, de luto. E se fechou de vez quando o caçula se casou há mais ou menos quinze anos atrás.
Tirando a saudade do falecido, era feliz em sua casinha, com suas samambaias, seu gato persa e sua tevê a cabo.
Mas o imponderável e o tempo foram trazendo um sentimento dentro de seu coração que jamais pensou ter: solidão.
Mas não fora a solidão de sempre, das horas afagando o gato, das conversas a regador com suas plantas que a afligia. Desta, ela até gostava.
Fora a falta de algo que ao contrário de suas samambaias nunca cultivara devido sua falta de traquejo social e seu gosto por afazeres e não-fazeres domésticos: Amigos, ou amigas.
Pensava e não encontrava ninguém em sua memória a não ser vizinhas que de tanto a convidarem pra sair e depois de tantos anos de insistência, desistiram de tirá-la de sua reclusão voluntária.
Não se fez de rogada, no auge de seus setenta e sete anos, tomou um banho, botou um vestido lindo, maquiou-se e saiu.
Ao passar em frente a uma casa de chá de nome sugestivo devido à sua religiosidade, Chá dos Frades, entrou. Sentou-se e perguntou ao garçom o que ele sugeria como um chá novo pra seu paladar selênico e longínquo para aquela tarde de sol.
Foi lhe servido uma grande xícara de chá de hibisco, quando adentrou sua vizinha Silvia ao estabelecimento sem acreditar na cena que presenciava.
“Você? Fora de casa? Tomando chá? Isso merece uma comemoração! O mesmo pra mim, por favor.”
O rapaz voltou trazendo o chá de Dona Silvia e explicou os benefícios medicinais do hibisco e quando chegou na parte sobre o poder afrodisíaco do chá Dona Cleide suspirou...
“Quanto tempo perdi, ai se meu marido fosse vivo... Hoje o circo pegava fogo!”
No outro dia estava ela lá de novo tomando seu chá de hibisco, mas agora acompanhada de Dona Silvia, Dona Jaqueline e muitos quiches e bolos de chocolate.
“É Dona Cleide, o circo sempre pega fogo, sempre!”


... GATO LARANJA ...
28/02/2008

A Sorte do Gato Preto

Notamos sempre algo estranho quando nos deparamos com alguém supersticioso, ainda mais no momento exato da execução do ato superstição. Ou você não acha engraçado quando vê uma pessoa desviar de uma escada em plena luz do dia, enquanto o trabalhador está distraidamente pintando sua parede com seu instrumento de trabalho, sem notar a estratégia do transeunte. E as pessoas que fazem o sinal da cruz em frente às igrejas, estas até entendo, mas, tem gente que faz o mesmo em frente ao cemitério, até parece que não moraremos lá um dia eternamente.
Esqueci ainda daqueles que não abrem a porta de casa alheia para sair, com medo de não voltarem mais.
Há ainda muitas que se enumerarmos aqui não contarei a história que pretendo, mas não posso me esquecer do dinheiro embaixo do prato de nhoque de batata na última sexta feira do mês e da lentilha do ano-novo, sem contar as sete ondas da passagem de ano. Engraçado, mas temos que respeitar esta instituição nacional: a superstição.
Mas no que quero contar, vou citar uma das mais temidas de todas, o gato preto. Nossa como tem gente que tem medo de gato preto. Na porta do cemitério então, sei lá quantos anos de azar!
Bobagem!
Mas Augusto nosso amigo aqui, achava que não tinha superstição nenhuma, mas não lavava a camisa do seu time enquanto semana após semana o time estava ganhando. Ele dizia que não era superstição e sim uma mania. Todo supersticioso tem uma mania.
Só que de uma coisa ele nunca teve medo, escada. Fazia questão de passar embaixo só para fazer média com os amigos e as pessoas que estavam por perto. Adorava quando ouvia um conselho de alguém neste momento, do tipo: “Não faça isso, dá azar!” E ele ria por dentro nesta hora, nunca acreditou neste negócio de sorte ou azar.
Houve uma época em que a vida de Augusto, que nunca fora uma vida fácil, começou a degringolar de uma vez só.
Primeiro veio a falência de sua empresa, pequena, modesta, mas que lhe deixou uma dívida bancária e credores impagáveis. Contudo ele tinha fé que tudo se resolveria. Que tudo ia dar certo.
Mas cadê emprego novo, onde estavam as oportunidades de um recomeço, onde estava a grana para pagar suas dívidas? Só arrumava bico. O gerente do banco, antes seu amigo, o queria agora preso. Seus ex-fornecedores o procuravam com notas e palavras pouco amigas nas mãos e nos bolsos.
Ao invés de emprego fixo, dinheiro pra poder recomeçar, ele só arrumava bico para sobreviver, e mal.
Aí veio a separação, e aí já viu, esposa que ganha mais que marido das duas uma: ou larga o indivíduo falando sozinho ou arruma um amante. Mas com Augusto a vida foi cruel: os dois aconteceram simultaneamente.
Pronto, foi um passo para a beira do abismo. No entanto ele nunca tivera tendência suicida, e se matar era coisa de covarde em sua opinião. Ele era um otimista, e nem por isso se deixava abater.
Mas um dia, por exemplo, num bar afogando suas mágoas na cachaça ele me confessou que estava no fundo do poço, e ao olhar para o chão deste fundo de poço encontrou uma argola de ferro debaixo do lodo. Resolveu puxar a argola e percebeu que era apenas uma tranca de um alçapão. E chorando me confessou: “Gato, no fundo do poço tem porão! Aonde mais posso chegar?!”
Neste dia senti uma coisa feia pelo meu amigo: pena.
Mas dei conselhos, disse que isto é só uma fase, na vida tudo passa e que um dia ainda íamos rir disso. Coisas e frases feitas que todo amigo diz nesta hora. Coisas que pra quem está no porão do fundo do poço não fazem sentido algum. Não acrescentam nada e acredito que ainda fazem com que a pessoa sofra mais. Ao te ver otimista com ele ao chão.
Ele tomou um trago, paguei sua pinga e me abraçou dizendo que eu era o único amigo com quem ele podia contar mesmo, de verdade. O restante, família, no fundo no fundo, estavam mais preocupados com a mancha que ele deixava em suas imagens do que com sua situação real, suas dores individuais.
Não o vi mais depois desse dia. Mas ele continuou sua luta para sair do buraco.
Emprestava jornais dos parentes e tentava qualquer emprego, qualquer oportunidade para poder pagar suas dívidas, sua pensão e apagar seu passado.
Ouvia mais não do que sim, pois pudera sempre fora seu próprio patrão, e na hora de pedir emprego os empregadores viam que ele nunca tivera experiência como empregado, e sua falência profissional contava muito, ao ponto de receber muitos tapas nas costas e promessas de ligações que nunca aconteciam.
Começou entrar em desespero, lembrou-se de sua juventude. Quando tocava numa banda de rock, pois estudara música por toda infância e adolescência, cantava bem em reuniões informais com seus amigos, tocava piano e violão. Mas isto sempre fora um hobbie. E nunca uma profissão.
Lembrava-se dos conselhos de sua mãe de que música não dava futuro, que ele devia estudar e ter um diploma e uma profissão. Conselhos nunca seguidos. Buscara seu caminho como comerciante no ramo de alimentação, sempre com sucesso, mas lá no fundo sua alma de artista ainda falava alto. Sempre que podia escrevia uma música, tirava um som de seu piano.
Mas fazia tempo que não tocava uma música, desde que sua vida entrara em parafuso esquecera de seus hobbies. E agora ainda mais depois de sua queda pessoal, sua derrocada profissional, esquecera-se completamente disso.
E essa lembrança fez com que ele aquecesse seu coração, mas ainda sentia desespero em sua alma. Pela falta de perspectivas momentâneas.
Chegando em seu quarto de pensão pegou seu violão e tocou pela primeira vez em meses de agonia pessoal. Mas faltava um sinal, faltava algo na alma de um profissional que o motivasse a tomar um rumo diferente em sua vida.
Dias depois, andando pelo centro encontrou um amigo de infância e de banda de rock que ainda estava tocando, mas agora profissionalmente. Conversaram horas sobre o passado, sobre o presente e foi aí que ao falarem no futuro, recebeu o convite para tocar piano em um novo trabalho, numa casa noturna de São Paulo, coisa profissional e bem remunerada. Mas precisava ajudar não só apenas com suas mãos hábeis no piano, mas também definir o nome da banda.
Saiu daquela conversa super radiante, feliz mesmo, como não se sentia há anos. Vislumbrou a perspectiva de uma virada em sua vida, remuneração condizente com sua posição e mais, se sentiu jovem aos trinta e três anos de idade, um adolescente.
Virando a esquina deparou-se com um filhote de gato perdido, um gato preto.
Imediatamente ligou para seu amigo e passou o nome novo da banda para ele: Gato Preto da Sorte, ou seja, GPS.
Daí por diante sua vida mudou mesmo e para melhor sempre. Tocou a vida e foi feliz tocando piano.





... GATO LARANJA ...
02/03/2008

Poesia de um Gato a uma Feiticeira de Luz

Entre um miau e outro ronrono
em minha alma sete vidas?
ainda restam algumas!
Subo no muro, sem opnião dividida
com calma em ti
com meu olho de gato enxergo nas nuvens,
na terra em brumas.

Pensar não é coisa de bicho felino
viver no telhado já não quero mais

Em toda dúvida
sua voz de doçura vem em meu ouvido menino,
sem jeito me arrepio todo em alma fugáz
Sou laranja!
Me dizem amarelo, rajado, vira-lata, até angorá.
Quem realmente vê minha alma de gato?

Será você a gata que tanto pedi a lua?
Miando?
Será você, com carinho e toda sua verdade nua?
Não te vi, mas olho as estrelas esperando o dia.
Não te conheci, mas meu miado a lua entenderá.
Será?

Penso em você, pareço nem gato
Será que sou gente?
Me sinto felino, quem responderá?
Será que aquele sentimento louco está tramando algo?
Minhas vidas esgotarão um dia, mas antes...

Minha vida se cruza com a sua,
é coisa de muro, quintal e telhado,
coisa de gato que sofre de miado em miado,
pois é assim seja gato ou poeta
da noite sofre no amor, pois vive de açoite...

e hoje da dor!


De GATO LARANJA
Para uma Princesa em partida
... Fevereiro 2008 ...

O Desejo, a Vontade e a Realidade

Jonas, se sentia uma pessoa predestinada, sentia desde a infância que algo grande aconteceria em sua vida. E este sentimento vinha desde a infância, nasceu com ele.
Mas sempre o fora fomentado por sua avó paterna, que desde a viuvez morava em sua casa, contra a vontade de sua mãe.
E quando sua avó, religiosa, devota de Nossa Senhora Aparecida contou a historia de seu xará bíblico, ele teve certeza de que algo nele era mesmo diferente.
Para elucidar melhor o que estou dizendo, e o que a avó de Jonas o contou, vou tentar ser breve sobre a história do profeta Jonas.
Deus queria que ele O servisse. Que ele levasse sua palavra aos povos, mas ele nunca o quis, achava que era um fardo muito pesado e fugiu, pegou um barco e atravessou o mar para fugir da vontade de Deus e sua voz sempre ali, em seus ouvidos. Nesta viagem de barco Deus o intimou novamente e ele recusou. Veio uma grande tormenta, a embarcação estava a deriva e Jonas confessou aos marinheiros amedrontados que esta tempestade era a ira de Deus contra ele, pois ele não queria servir a Deus.
Sem sombra de dúvida os marinheiros atiraram Jonas ao mar e a tempestade parou, de repente. E Jonas foi engolido por um grande peixe (diz-se por aí que era uma baleia).
Não se sabe como ele não foi digerido e nem mastigado pelo peixe, ele ficou lá dentro por dias, ou sei lá meses, se alimentando dos pequenos peixes que o peixão comia. E você pensa que Deus deu trégua a Jonas? Pelo contrário, continuou exigindo que ele voltasse e falasse a seu povo sobre a fé, e suas virtudes. O amor e o bem. Ele ainda recusava, enquanto vivia uma experiência surreal dentro do peixe, viajando pelos mares, numa época em que submarinos seriam impensáveis.
Até que um dia Jonas se deu por convencido e aceitou a vontade Dele. E imediatamente o peixe o cuspiu pra fora na praia de onde ele havia embarcado naquela viagem. Bom o resto da história se você quiser saber melhor leia na Bíblia, no Velho Testamento. Fica a seu critério.
Mas o nosso Jonas, de nossa época, não era nem um pouco religioso. E o plano de Deus para ele passava longe de ser o de seu xará. Começando pela história da baleia. Pois ele sempre se sentia dentro de um peixe indo de Ribeirão Pires na grande São Paulo onde residia até Santo André todo dia num vagão lotado de trem para trabalhar. Ele se sentia uma sardinha em lata. Todo dia.
E a vida aos poucos levara sua visão poética da bíblia para o espaço. Mas ele sempre achava que tudo ai mudar e que sua vida ainda seria grande, seria transformada por Deus.
E esta transformação começou quando ele foi assaltado pela décima vez em Santo André, onde seu trabalho consistia em vender telefones celulares para micro empresas. Neste assalto, pela primeira vez, teve medo de verdade, pois o assaltante era um menino que aparentava doze anos de idade e enfiou uma arma em seu pescoço. O medo foi terrível, a ponto de mesmo sabendo de uma lei de desarmamento civil hipócrita que existe em nosso país, comprou um revolver, ilegal e com a numeração raspada.
Não culpemos nosso personagem por esse delito, pois o medo nos torna vítima de nós mesmos hoje em dia no Brasil. E só quem já foi assaltado, com uma ara apontada para si sabe o que Jonas sentia.
E todo dia, ele com sua pasta de trabalho, seu palm-top e seu Taurus calibre trinta e oito saíam infelizes a caminho daquele trem insuportável numa mochila velha, cheia de esperanças, medos e dois sanduíches de mortadela que sua mãe lhe preparava às cinco da manha antes de sair também.
Mas sua rotina não mudava e sua arma parecia algo sem sentido ali, presente em sua vida. Até um dia em que viu uma pessoa morta a tiros na rua sendo coberta com um pano arranjado por um comerciante, no centro.
Paremos por enquanto aí pra pensar sobre duas coisas. E ponderarmos sobre os pensamentos de nosso Jonas naquele momento.
Você pode até perguntar se ele quis saber o que aconteceu com a vítima, se era bandido, polícia ou apenas mais um Jonas engolido e aí mastigado pelo peixe. Não ele não perguntou a ninguém e nem quis se perguntar o motivo daquele corpo estendido no chão, só fitava a cena com admiração.
Outra coisa intrigante, é que ele, sempre honesto, sempre trabalhador e boa pessoa, não sentiu nada. Não sentiu dó, não sentiu medo e muito menos indignação.
A única coisa real e palpável que veio à sua mente foi de poderia ter sido ele o matador. O assassino. Ele andava armado, ilegalmente, mas armado todos os dias. Não sabia atirar, mas deixava sempre a arma carregada. Pronta ela, a Taurus e ele, o Jonas, para matar.
Durante dias este pensamento rondou sua cabeça, seus sonhos e pesadelos. Aquilo não o deixava em paz. Mas também não tirava sua paz interior, era só subjeção de sua mente.
Continuou andando armado e com seus sanduíches de mortadela na mochila, trabalhando e pegando seu trem de sardinhas humanas. Religiosamente. O pensamento lá, rondando suas idéias, poderia ele matar alguém? Teria ele coragem pra tal?
E se fosse assaltado de novo? Reagiria com uma bala na cabeça do assaltante?
Mas não pense você que tais pensamentos e questionamentos atrapalhavam sua rotina e sua confiança na honestidade, no trabalho e no amor em sua família. Eram só devaneios.
Mas eles não cessavam nunca de sua mente.
Até que um dia contou ao um grande amigo essa amargura que penava seus sonhos. Este amigo sabia que ele andava armado, não era contra, mas aconselhou Jonas a se livrar da arma, pois isto poderia ser a solução deste devaneio. Ele seguiu o conselho.
Deixou a arma em casa pela primeira vez, em meses, e foi para rua, para o trem, para a vida. Mas não pense você que se livrou do pensamento que lhe rondava, pelo contrário. Sem a arma, sentia-se mais seguro para idear seu devaneio mortal.
Certo dia, mais um dia comum em sua vida de novamente desarmado, sentou-se na praça para comer seus sanduíches e percebeu que os havia esquecido em casa. Ficou triste, pois, até tinha o dinheiro para uma refeição barata e suja do centro. Mas gastaria todo o pouco que lhe sobrara do salário e que já tinha destino próprio, um cartão telefônico e um maço de cigarros para sua mãe.
Mas a fome era grande e se dirigiu ao bar mais barato e mais sujo do centro e pediu um pedaço de torta de frango, que vinha grátis um copinho de suco de laranja. Sentou-se em uma mesa no canto do bar. Arrasado pois só lhe sobraria vinte centavos no bolso até o dia de seu pagamento, na próxima semana e as passagens de trem pro resto do fim do mês.
O garçom veio com o prato de torta, o suco o guardanapo e os talheres e o serviu educadamente. Comia aquilo como se fosse a melhor e a pior refeição de sua vida. A cada pedaço de torta, era como se comesse da própria carne. E a vertigem desta sensação aumentava cada vez mais.
Tomou um gole do seu suco de laranja, daqueles feitos com pó químico que de laranja só tem o gosto. Respirou fundo. Havia ainda meio pedaço de torta no prato, quando reparou que adentrava ao bar restaurante uma senhora no auge de seus sessenta anos. Senhora esta que se parecia muito com sua falecida avó.
Sentiu a vertigem novamente e rapidamente se lançou contra a senhora, com a faca sem ponta que estava cortando a torta para cima dela aos gritos: “Saí daqui seu peixe, não me engula seu monstro!”
Todos no bar ficaram horrorizados com a cena, as doze facadas certeiras no peito da velha e os gritos de Jonas. Que perplexo entendeu ali, que seu destino era grande.
Que sua vida mudara para sempre. Entendeu tudo.


... GATO LARANJA ...
29/02/2008

A alma da puta que não pariu

“Vai à puta que te pariu!”
Algum dia, em algum lugar você já deve ter ouvido esta expressão, talvez como um xingamento próprio de sua boca ou terceiros. Num estádio de futebol nem se fala, árbitro de futebol que o diga.
Tem filho que fala para mãe, mãe que fala pra filho e ou até você mesmo mandando teu amigo ou inimigo ou sendo mandado pra esta mulher, esta meretriz que, pelo jeito, teve filho. E se você for o alvo do xingamento, tal meretriz, segundo o interlocutor, seria certamente a sua mãe.
Ou você não sabe que as meretrizes também têm filhos? Algumas os têm às pencas.
Bom, pra se entender o que quero dizer e a história que vou contar aqui, temos que dar algumas explicações.
Uma delas, já que estamos falando português do Brasil claro, de brasileiro para brasileiro, sem desmerecer a classe ou a cultura nacional. Uma meretriz que tem filho, ou filhos, como queira você leitor, é a nossa clássica e repetidamente comentada puta que pariu. Você já parou pra pensar nisso?
Mas ontem quando conheci nosso personagem, nosso anti-herói desta crônica, comecei a pensar diferente e ter outro ponto de vista a respeito dessas progenitoras de “vida fácil”.
E acredite no que vou contar, é tudo verdade mesmo!
Mas ainda é cedo pra falar de nosso senhor personagem, de sua vida e suas dores. E obviamente sua mãe.
Uma puta que pariu, é nada mais nada menos que a maior vítima deste desejo de xingamento, quando deferido a outrem. Sim, pois quando mandamos alguém a ela, não estamos ofendendo diretamente nosso alvo, o que certamente seria nossa intenção e sim a progenitora dele, ou seja, sua mãe. Se ela não for uma meretriz, lógico!
“Peraí, não bota a mãe no meio! Mexeu com a minha mãe, mexeu comigo!”
Vamos deixar claro aqui ainda que muitas mães são mais putas do que parem e outras parem mais do que são putas. Mas não coloque palavras em minha crônica, pois nem todas as putas são mães e nem todas as mães são putas.
Esta confuso né? Não era essa minha intenção... Acredite!
Mas vamos ao nosso cavalheiro, ao nosso filósofo de balcão de bar.
Estava eu tomando meu cafezinho no meio da tarde, junto a pessoas que as conheço e não conheço bem, pois de tão habituê que sou da padaria da esquina de minha casa para este café de minhas tardes, conheço um senhor que passa o dia lá tomando pinga, pois, depois que aposentou não agüenta ficar em casa com a mulher. Também um cavalheiro que sempre pede um sanduíche de mortadela e um copo de água, estranho. Há também o Ceará, o balconista, copa, chapeiro e conselheiro dos freqüentadores de lá, tem receita pra qualquer drama, doença ou palpite de jogo do bicho. Sem contar outras figuras que agora não vem ao caso, mas estão sempre naquele balcão.
Mas não fora nada de comum lá que chamou minha atenção e sim um senhor, de baixa estatura e de idade avançada que nunca o vira lá.
Ele entrou esbravejando algo, que no começo não entendi bem o que era. Mas me chamou a atenção o fato de ele estar enlouquecido de ter sido mandado à puta que pariu por alguém.
Vamos e convenhamos que ser mandado pra esta senhora hoje em dia, neste mundo em que vivemos já nem é algo de tão vergonhoso, tamanha a falta de educação do povo brasileiro e da complacência que temos das coisas feias e erradas que vemos ou ouvimos à nossa volta.
Mas ele estava tão possesso com o fato que minha curiosidade fez aproximar-me dele de modo muito sorrateiro e silente. Dando margem para que o indivíduo puxasse conversa comigo.
Joguei sapo na água. Era o que ele queria. Um ouvido para desabafar a mágoa. Alguém para conversar. Coisa que neste mundo individualista de hoje é raro. Um ouvido aberto. Um coração complacente.
Se apresentou, disse seu nome, um nome comum, que de tão comum, me pareceu ele a imagem de um povo sofrido de um país subdesenvolvido e sem identidade, José da Silva.
Disse ser aposentado, mas trabalhador ainda. Pediu uma pinga, duas e na terceira começou a falar de sua mágoa momentânea. Do que realmente lhe tirara a paz naquela hora.
Fora mandado à puta que pariu por um ex-colega de trabalho por alguma coisa relacionada a dinheiro. Maldito e bendito dinheiro!
Mas o que o incomodava mesmo era que nunca conhecera sua mãe, fora criado num orfanato. E mesmo que quisesse ser mandado para ela, não haveria jeito. Pois passara quase metade de sua vida em busca de sua mãe e nunca conseguiu nem uma pista de seu paradeiro.
“Como pode ele dizer isso? Se nem sei se minha mãe fora uma puta.”
Achei graça no que ele disse e sorri displicentemente, mas silenciei diante de um olhar tão dilacerante de almas que lançou à mim o sujeito. O que nos é engraçado, muitas vezes, pode ofender aos outros e me esqueci disto na hora.
“Meu filho, até gostaria que minha mãe fosse uma puta que me pariu, mas na minha idade sei que ela já deve estar morta. E digo mais adoraria ser mandado à puta que pariu e ter realmente nesta hora para onde ir. Ter a possibilidade de, puta ou não, abraçar minha mãe.”
Me calei, paguei meu café e fui embora.
Chegando em casa, sabendo que minha mãe nunca fora uma puta que me pariu, apesar de nesta vida ter sido mandado várias vezes por outros assim à ela. Abracei-a.
Ela não entendeu nada... Melhor assim!



... GATO LARANJA ...
28/02/2008

O Cuco e o Pêndulo

Numa cama quase desfeita, num quarto quase arrumado, se não fossem duas taças de vinho no chão, uma em pé, sangria de resto da bebida ainda e nunca após tomada e outra deitada derramando seu sangue avinagrado formando um pequenino rio magenta que corria pelo assoalho até debaixo do leito de amor ainda quente. Uma garrafa de Chateau Ansciant 1995 rolada ao chão, perto e manchando a cortina. Respirava fundo Jennifer sobre seu travesseiro. Sentia nojo de si mesma, sentia nojo daquilo que fora o auge de seu prazer e que agora se entranhava em seu corpo nu. Sentia nojo dos restos de seu ato, grudados em seu corpo, colados em sua pele e seu sexo, sentia nojo de seu corpo.
Prostrada num lençol pouco mexido, pois tudo fora muito quente e muito rápido, notava-se uma lágrima saindo leve e solta de seu olhar fixo na parede, mas não era a parede que fitava e sim as horas naquele relógio antigo, um cuco, que de geração em geração, hoje era a única coisa que destoava de seu apartamento bem decorado e moderno mas ainda reluzia em sua mente lembranças de um tempo de felicidade e saudade de sua mãe e infância no interior de São Paulo, coisas perdidas no tempo rápido e implacável da capital real do Brasil. Marcavam seis e cinqüenta e sete da manhã, três minutos para o auge fatídico de sua indignação, sua raiva, seu remorso e dor. Sua realidade.
Ao sair do cuco de sua casinha de madeira, ela levantou, não havia vontade, não havia desejo para nada, o que a dominava eram a dor na alma e o sono que Baco deixara em sua passagem de taças e sorrisos avinhados, secos e tintos.
No chuveiro, lentamente tirava de seu corpo o cheiro daquele sujeito que um dia fora seu. Seu namorado, seu homem, agora de outra. E pelo ralo ainda iam as esperanças em seu namorado, traído horas atrás e sempre com a mesma constância regada a vinho e saudades de um amor que nunca tivera. Escorriam ainda sobre sua pele o horror de não entender o porquê da facilidade a se entregar a um homem que não queria nada mais dela além do que ela mesma, ofegante, oferecera noite anterior. Ainda mais que desde a perda de sua virgindade com ele, há muitos anos, ela sabia que algo nela nunca funcionava direito, seu corpo reagia ao sexo até certo ponto e se culpava por isso. Mas não fora essa a questão de sua dor atual.
Não se sentia bem com esses pensamentos lavados em sabonete hidratante, não se sentia bem com nada. Não tinha fome, ressaca ou amor próprio quando o cuco avisou sete e meia. Correu feito louca para rua, para o trabalho.
No metrô percebeu um casal em êxtase ao fogo da paixão. Que pela maquiagem desfeita a beijos, pelos olhos vermelhos dela, a balada fora boa a ainda continuaria. Notava a mão do rapaz entre as pernas da moça, que ainda muito louca com o doce na boca, regozijava com aquelas mãos masculinas de seu homem, pervertidas e ousadas. Ainda mais num vagão lotado. Desceram na Praça da Árvore, enquanto ela seguia para a Sé. Passou o resto do tempo pensando com nojo do que vira, da obscenidade que presenciara e se sentiu hipócrita e insatisfeita. E caminhando ainda com esse pensamento subjugando seu pudor, entendeu sua insatisfação. Sentiu inveja da moça, sentiu vontade de ser masturbada no metro por seu homem. “Mas que homem é meu?”.
Os pensamentos se esvaíram feito as pessoas naquelas escadas rolantes do metro em direção ao centro. E quem trabalha no centro de São Paulo não tem tempo de pensar, apenas anda, age e obedece ao curso de seus afazeres e mágoas. Vive sobrevivendo. Sobrevive vivendo.
Caro amigo leitor. Não venho eu desfazer ou fazer uma alusão poética de qualquer cotidiano aqui. Chico Buarque sempre o fez bem, com muita classe e categoria. Quem sou eu? Senão um Gato no telhado?
Voltando a vaca fria, e desculpe o trocadilho, à rotina fria, a mulher fria. Passou Jennifer o dia todo pensando naquele casal. Pensou tanto neles, trabalhou tanto que quando percebeu já estava à caminho do metrô novamente, a caminho do lar e de seu cuco. Que vida!
Mal entrou em casa e seu telefone tocou, pensou em não atender, mas imaginava quem poderia ser. Toda mulher precavida soma antes de dividir. Junta para escolher:
- Alô!
- Onde você estava, por onde andou hoje? Lembra será que eu existo?
- Eu estava trabalhando, não nasci e nem sou rica, meu anjo...
- Te liguei várias vezes, seu celular só dava caixa postal, no escritório você não estava...
- Fiquei na rua o dia todo, meu chefe me queria no campo, checando informações de...
- Você me evitou o dia todo, isso sim!
- É, pode ser. Se prefere pensar assim...
- Então, vamos fazer pelo telefone algo que já devíamos ter feito antes, cara a cara. Me esquece! Esquece meu nome, meu telefone! Rala! Vaza da minha vida, sua piranha! Ingrata...
Tu, tu, tu, tu...
Era tudo o que faltava para coroar o dia, tudo o que precisava. Ser despachada pelo namorado pelo telefone, ainda mais sendo xingada! De piranha! “Rala! Vaza da minha vida!... quem ele pensa que é?”
Lembrou-se da noite anterior, do seu ex que só queria comê-la, e ela dera o que ele queria, saindo mais rápido de sua casa, quanto de dentro de seu corpo. Lembrou-se do casal do metrô, da sua hipocrisia e inveja em relação a eles. Lembrou-se do cuco. Maldito cuco!
Chorou muito.
O telefone tocou novamente, decidiu não atender, imóvel em seu pranto. Tocou várias vezes, por mais de hora, e ainda chorando teve um lance de fúria. Atirou longe o telefone, a mesa, o abajur, a garrafa de vinho que no chão jazia, cadeiras voavam contra a parede enquanto sua alma se despedaçava, feito seu pequeno e aconchegante apartamento. Sentimento de ira, ódio de si mesma. Coisas que sua auto estima e seu modo de encarar modernamente a vida nunca a afrontaram.
E neste instante de ira, objetos ainda voando e sentindo sua vida amorosa em queda livre, reparou nas taças ainda no chão. Reparou no lençol com manchas daquele sexo rápido e volúvel da noite anterior. Parou!
Veio à sua mente seu amante (ex-namorado) pedindo com audácia, lábia e ela dando o que ele queria, sempre! Sentiu-se verdadeiramente uma piranha. Uma vagabunda comedora de homens, que não conseguia mais ter orgasmo, só sexo. Bom para eles e sufocante para ela. Sentiu-se nada. Sentimento novo e dolorido.
Saiu de casa no mesmo momento, afobada, aturdida e triste, com a roupa com que havia chegado do trabalho. Ao celular tentava contactar suas amigas mais próximas, sem sucesso. Ou dava caixa postal ou elas não podiam socorrê-la de sua angústia.
É Jennifer! Nestas horas que colhemos os frutos das amizades que pensamos ter plantado!
Pensou nos momentos em que ela mesma sempre fora muito falsa e insensível com suas melhores amigas, dos pedidos de ajuda sentimentais não atendidos por fraqueza, insensibilidade ou mesmo preguiça. O que esperar agora delas? Comiseração? Dó? Amor?... Ah! Mulheres...
Entrou no metrô e embarcou no primeiro trem que passou, pensava em ir até a casa do namorado (ex-namorado no momento) pedir desculpas pelo jeito arrogante, sua falta de tato e principalmente dedicação a ele e ao relacionamento de um ano e meio.
Mas sem esperar, um rapaz sentou ao seu lado e lhe perguntou as horas, ao pestanejar para a resposta, reparou que o rapaz era novo, pelo menos bem mais novo que seus trinta e três anos, estava vestido como quem saía do trabalho, coisa de universitário. Sentiu algo novo, algo fugaz em sua alma sóbria e lhe deu as horas, seu telefone e saiu imediatamente do vagão, deixando o rapaz atônito, não só com o ato, mas também com o que falara antes de sair: me liga hoje e me come!
Ele não entendeu nada, mas nem pensou duas vezes ao chegar em casa. Tomou banho, perfumou-se e saiu. Bastou um telefonema, dois créditos de seu cartão telefônico e ao abrir a porta lá estava ela vestida para amar e devorar, e ele vestido para ser levado ao inferno se preciso fosse, ser devorado, mas tremendo na sutileza e a estranheza da situação. Querendo, ser e estar, mesmo sem entender nada.Duas taças de vinho à mesa, telefone fora do gancho. E mal se alinhavaram os pensamentos e idéias, nem nomes foram ditos com sobrenomes e estavam eles na cama, dando e recebendo. Amando e sendo odiados reciprocamente.
Mas ela só pensava, mesmo penetrada com doçura e força, no som exaustivo, repetitivo e enfadonho do pêndulo de seu cuco e do esforço viril do rapaz. Não se concentrava, não gozava, não sentia. Apenas doía em sua alma o desejo dele e seu corpo juvenil sobre o seu quase martírio feminino adulto.
Meia noite e o pássaro saiu da casa aos doze cantos programados pelo relógio. O sexo acabou ali, sem menores ou maiores explicações por parte dela, que apenas pedia que ele fosse embora, nu se preciso fosse. Mas que fosse logo!
Foi quando Jennifer teve a grande idéia que mudaria sua vida para sempre...
Vendeu o cuco a um antiquário e pelo mesmo valor do relógio comprou vários vibradores e saiu à procura de uma namorada.
Chega de homens, seus pêndulos e seus cucos! Chega!




... GATO LARANJA ...
24-02-2008

Qual a cara do cavalo do Diabo?

Quem não sabe pra que lado vai correr numa hora difícil como essa minha agora e de tantos outros seres que acordaram nesta segunda-feira insossa, com idéias e compromissos mas poucas perspectivas sobre a terça-feira. Geralmente, ou corre pra qualquer lado ou fica parado, estático achando que nada de pior pode acontecer já que, sem as tais perspectivas de uma vida melhor, sem alternativas de um futuro mais próspero e com a famosa ‘depressão’ que normalmente afeta metade dos trabalhadores que dão duro pra passar a vida andando de ônibus, escolhendo entre o plano de saúde e um aluguel mais caro para uma vida mais confortável, nem imagina que o pior está vindo, e ele vem vindo a cavalo, o diabo.
Você por uma acaso já viu a cara do diabo?
Todo mundo se preocupa, queira ou não, consciente ou inconsciente com o tal do diabo. Se você acha que você é o único que não se preocupa com isso,da forma em que eu expus, pare de ler agora, pois você é Deus e não sabe ainda. Procura o Dalai Lama o mais rápido possível. E mude o mundo já, e com as mãos!
Agora, para aqueles que apenas duvidam de sua existência é porque não acreditam em Deus. O diabo é o lado criativo Dele, ou você pensa que seríamos apenas felizes e gordos sem passar por tristezas incomensuráveis e muita fome antes; o diabo é o crivo. (Ying-Yiang). Simples.
Poderia eu aqui fazer qualquer apóstata, ou ateu acreditar em Deus e no diabo, tenho argumentos teológico-mundano-boêmios e principalmente ‘lábia’ pra isso, mas não é essa a questão. Acredite em você antes de me dar razão por alguma coisa.
Pense comigo, de tanto ele, o diabo, ser falado, comentado, temido, exorcizado, amaldiçoado. Está sempre na boca e nos pensamentos do povo. Nas maldades dos políticos e nos eleitores que vêem a noticia pela televisão e falam mal, blasfemam, mas continuam votando mal. Nas senhoras que não dão moedas para pedintes em ônibus pelo simples fato de eles beberem pinga com essas moedas. “Cada um se fortalece como pode ou conhece, minha senhora”. Na ignorância de um povo sempre iludido que a grama do vizinho é sempre mais verde, eu perderia horas dando exemplos de maldade aqui.
Os que tiveram a experiência de encontrá-lo pessoalmente, seja por ‘maldiçoamento’ desesperado ou apenas negócios. Comentam a respeito até do bafo de enxofre, seus olhos esbugalhados e maléficos trocando almas de seres gananciosos por poucas e deliciosamente boas coisas mundanas, dizem e desdizem ainda do seu chifre e sua capacidade de se transformar em uma mulher linda, sedutora que até a Jesus Cristo tentou. Fogo que sai do chão, isso eu mesmo vi! Acredite.
Ah! A ira, como posso esquecer a ira desse ser tão maléfico e encantador, tão pudorento e atraente que no desespero do fundo de qualquer poço humano, qualquer queda fraca ao chão ele está lá, chega primeiro, silente, esperando o momento certo a oferecer a mão para nossa ascensão. Com poucas e honestas exigências, óbvio e claro.
O que é uma pequenina alma em troca da saída de nossos problemas insolúveis cotidianos, da nossa paz interior em nossas neuroses diárias que nunca nos abandonam? Por mais fortes que sejam as balançadas de cabelo de nossa feiticeira predileta, o diabo sempre está por cima observando nossa dor, esperando nossas fraquejadas e inseguranças.
E dinheiro então? Esse nos transforma em elfos servis ao capeta. O dinheiro nos deixa felizes e superiores quando o temos, e tristes e inferiores quando falta. Pode até ser um contra senso, mas uma coisa é clara: Que penosa nossa vida mundana! Que regozijo diabólico!
Nossa inveja humana, nossa raiva, ira e sei lá quantos forem os pecados de setenta vezes sete maldades que cometemos todos os dias, não são nada pra ele.
E não vem pensar que você, só você, é a única pessoa do mundo que não fala mal do chefe, que não reclama do calor, que não manda seu irmão calar a boca, que vota bem, que nunca deu um fora em alguém apaixonado só por altruísmo, ou amor próprio, que briga com a mãe só porque ela não é igual a mãe de sua amiga, que xinga o garçom porque ele trouxe outra marca de cerveja e não a que pediu. São cotidianas as maldades, são simples as nossas pequenas prevaricações com o diabo. Abraça-lo e beija-lo na boca então, como diz o ditado, é assassinato passional, é cadeia.
Ouço uma frase sempre, que eu mesmo a pronuncio vez ou outra: “Vá pro diabo que te carregue!”. E aí é que reside a questão de todo esse falatório que reduz você leitor ao que é, nada!
O diabo muitas vezes vem e nos carrega. Pega no colo, deixa um mundo de palavras boas e perversas em nosso vocabulário, frases feitas que na hora agá são da maior serventia, coisas como: “aquele filho-da-puta me paga!”, “Amanhã eu pego ela, e ela vai ver com quantos paus se faz uma canoa!” “Tudo bem, hoje passa, mas amanhã será minha vez”, “A vingança é um prato que se come frio”!
Tudo certo, posso falar várias dessas aqui, conheço quase todas, mas isso são só as frases comuns, ditos populares que se ouve do fim do mundo ao começo da Terra. Imagine você aquelas que saem de nossa alma na hora, aquelas que só dizem respeito a nós e aos nossos alvos humanos em nossos momentos de fraqueza (pecado!?). E, olha por conhecimento de causa, muitas vezes tais palavras e julgamentos seriam impublicáveis aqui.
Mas, quem carrega o diabo e dá a liberdade dele agir em nossa alma e em nosso subconsciente assim, rápido e sempre, sem pensar muito? Quem o leva até nós por súplica, anseios ou até mesmo contra nossos desejos?
Quem carrega o diabo em sela de prata? Quem é o cavalo do diabo? Qual a cara do cavalo do diabo?
Você, não vai agora depois desses argumentos poucos (poderiam ser muitos mais) dizer: “Esse cara está mentindo, que bobagem, diabo, Deus, pecado, isso não existe”. “Ah! Errar não é pecado!...” “A vida é assim mesmo.” “Mentimos para nos defender!” “Xingamos para extravasar!”
Será? Não seria o silêncio a espada e o escudo dos inocentes?
Não questiono o bem e o mal aqui, não questiono como fazemos para sobreviver nesta selva de pedras que criamos, e muito menos sou padre, juiz ou Deus para julgar ninguém. Apesar do desejo enorme que tenho disso sempre. Quem sou eu senão um escritor apenas?
Mas pergunto sinceramente: Qual a cara do cavalo do diabo? E melhoro minha pergunta: Quem é o cavalo do diabo? Essa resposta eu tenho e é simples... Olha pro espelho meu caro!


... GATO LARANJA ...
18/02/2008