O Cuco e o Pêndulo

Numa cama quase desfeita, num quarto quase arrumado, se não fossem duas taças de vinho no chão, uma em pé, sangria de resto da bebida ainda e nunca após tomada e outra deitada derramando seu sangue avinagrado formando um pequenino rio magenta que corria pelo assoalho até debaixo do leito de amor ainda quente. Uma garrafa de Chateau Ansciant 1995 rolada ao chão, perto e manchando a cortina. Respirava fundo Jennifer sobre seu travesseiro. Sentia nojo de si mesma, sentia nojo daquilo que fora o auge de seu prazer e que agora se entranhava em seu corpo nu. Sentia nojo dos restos de seu ato, grudados em seu corpo, colados em sua pele e seu sexo, sentia nojo de seu corpo.
Prostrada num lençol pouco mexido, pois tudo fora muito quente e muito rápido, notava-se uma lágrima saindo leve e solta de seu olhar fixo na parede, mas não era a parede que fitava e sim as horas naquele relógio antigo, um cuco, que de geração em geração, hoje era a única coisa que destoava de seu apartamento bem decorado e moderno mas ainda reluzia em sua mente lembranças de um tempo de felicidade e saudade de sua mãe e infância no interior de São Paulo, coisas perdidas no tempo rápido e implacável da capital real do Brasil. Marcavam seis e cinqüenta e sete da manhã, três minutos para o auge fatídico de sua indignação, sua raiva, seu remorso e dor. Sua realidade.
Ao sair do cuco de sua casinha de madeira, ela levantou, não havia vontade, não havia desejo para nada, o que a dominava eram a dor na alma e o sono que Baco deixara em sua passagem de taças e sorrisos avinhados, secos e tintos.
No chuveiro, lentamente tirava de seu corpo o cheiro daquele sujeito que um dia fora seu. Seu namorado, seu homem, agora de outra. E pelo ralo ainda iam as esperanças em seu namorado, traído horas atrás e sempre com a mesma constância regada a vinho e saudades de um amor que nunca tivera. Escorriam ainda sobre sua pele o horror de não entender o porquê da facilidade a se entregar a um homem que não queria nada mais dela além do que ela mesma, ofegante, oferecera noite anterior. Ainda mais que desde a perda de sua virgindade com ele, há muitos anos, ela sabia que algo nela nunca funcionava direito, seu corpo reagia ao sexo até certo ponto e se culpava por isso. Mas não fora essa a questão de sua dor atual.
Não se sentia bem com esses pensamentos lavados em sabonete hidratante, não se sentia bem com nada. Não tinha fome, ressaca ou amor próprio quando o cuco avisou sete e meia. Correu feito louca para rua, para o trabalho.
No metrô percebeu um casal em êxtase ao fogo da paixão. Que pela maquiagem desfeita a beijos, pelos olhos vermelhos dela, a balada fora boa a ainda continuaria. Notava a mão do rapaz entre as pernas da moça, que ainda muito louca com o doce na boca, regozijava com aquelas mãos masculinas de seu homem, pervertidas e ousadas. Ainda mais num vagão lotado. Desceram na Praça da Árvore, enquanto ela seguia para a Sé. Passou o resto do tempo pensando com nojo do que vira, da obscenidade que presenciara e se sentiu hipócrita e insatisfeita. E caminhando ainda com esse pensamento subjugando seu pudor, entendeu sua insatisfação. Sentiu inveja da moça, sentiu vontade de ser masturbada no metro por seu homem. “Mas que homem é meu?”.
Os pensamentos se esvaíram feito as pessoas naquelas escadas rolantes do metro em direção ao centro. E quem trabalha no centro de São Paulo não tem tempo de pensar, apenas anda, age e obedece ao curso de seus afazeres e mágoas. Vive sobrevivendo. Sobrevive vivendo.
Caro amigo leitor. Não venho eu desfazer ou fazer uma alusão poética de qualquer cotidiano aqui. Chico Buarque sempre o fez bem, com muita classe e categoria. Quem sou eu? Senão um Gato no telhado?
Voltando a vaca fria, e desculpe o trocadilho, à rotina fria, a mulher fria. Passou Jennifer o dia todo pensando naquele casal. Pensou tanto neles, trabalhou tanto que quando percebeu já estava à caminho do metrô novamente, a caminho do lar e de seu cuco. Que vida!
Mal entrou em casa e seu telefone tocou, pensou em não atender, mas imaginava quem poderia ser. Toda mulher precavida soma antes de dividir. Junta para escolher:
- Alô!
- Onde você estava, por onde andou hoje? Lembra será que eu existo?
- Eu estava trabalhando, não nasci e nem sou rica, meu anjo...
- Te liguei várias vezes, seu celular só dava caixa postal, no escritório você não estava...
- Fiquei na rua o dia todo, meu chefe me queria no campo, checando informações de...
- Você me evitou o dia todo, isso sim!
- É, pode ser. Se prefere pensar assim...
- Então, vamos fazer pelo telefone algo que já devíamos ter feito antes, cara a cara. Me esquece! Esquece meu nome, meu telefone! Rala! Vaza da minha vida, sua piranha! Ingrata...
Tu, tu, tu, tu...
Era tudo o que faltava para coroar o dia, tudo o que precisava. Ser despachada pelo namorado pelo telefone, ainda mais sendo xingada! De piranha! “Rala! Vaza da minha vida!... quem ele pensa que é?”
Lembrou-se da noite anterior, do seu ex que só queria comê-la, e ela dera o que ele queria, saindo mais rápido de sua casa, quanto de dentro de seu corpo. Lembrou-se do casal do metrô, da sua hipocrisia e inveja em relação a eles. Lembrou-se do cuco. Maldito cuco!
Chorou muito.
O telefone tocou novamente, decidiu não atender, imóvel em seu pranto. Tocou várias vezes, por mais de hora, e ainda chorando teve um lance de fúria. Atirou longe o telefone, a mesa, o abajur, a garrafa de vinho que no chão jazia, cadeiras voavam contra a parede enquanto sua alma se despedaçava, feito seu pequeno e aconchegante apartamento. Sentimento de ira, ódio de si mesma. Coisas que sua auto estima e seu modo de encarar modernamente a vida nunca a afrontaram.
E neste instante de ira, objetos ainda voando e sentindo sua vida amorosa em queda livre, reparou nas taças ainda no chão. Reparou no lençol com manchas daquele sexo rápido e volúvel da noite anterior. Parou!
Veio à sua mente seu amante (ex-namorado) pedindo com audácia, lábia e ela dando o que ele queria, sempre! Sentiu-se verdadeiramente uma piranha. Uma vagabunda comedora de homens, que não conseguia mais ter orgasmo, só sexo. Bom para eles e sufocante para ela. Sentiu-se nada. Sentimento novo e dolorido.
Saiu de casa no mesmo momento, afobada, aturdida e triste, com a roupa com que havia chegado do trabalho. Ao celular tentava contactar suas amigas mais próximas, sem sucesso. Ou dava caixa postal ou elas não podiam socorrê-la de sua angústia.
É Jennifer! Nestas horas que colhemos os frutos das amizades que pensamos ter plantado!
Pensou nos momentos em que ela mesma sempre fora muito falsa e insensível com suas melhores amigas, dos pedidos de ajuda sentimentais não atendidos por fraqueza, insensibilidade ou mesmo preguiça. O que esperar agora delas? Comiseração? Dó? Amor?... Ah! Mulheres...
Entrou no metrô e embarcou no primeiro trem que passou, pensava em ir até a casa do namorado (ex-namorado no momento) pedir desculpas pelo jeito arrogante, sua falta de tato e principalmente dedicação a ele e ao relacionamento de um ano e meio.
Mas sem esperar, um rapaz sentou ao seu lado e lhe perguntou as horas, ao pestanejar para a resposta, reparou que o rapaz era novo, pelo menos bem mais novo que seus trinta e três anos, estava vestido como quem saía do trabalho, coisa de universitário. Sentiu algo novo, algo fugaz em sua alma sóbria e lhe deu as horas, seu telefone e saiu imediatamente do vagão, deixando o rapaz atônito, não só com o ato, mas também com o que falara antes de sair: me liga hoje e me come!
Ele não entendeu nada, mas nem pensou duas vezes ao chegar em casa. Tomou banho, perfumou-se e saiu. Bastou um telefonema, dois créditos de seu cartão telefônico e ao abrir a porta lá estava ela vestida para amar e devorar, e ele vestido para ser levado ao inferno se preciso fosse, ser devorado, mas tremendo na sutileza e a estranheza da situação. Querendo, ser e estar, mesmo sem entender nada.Duas taças de vinho à mesa, telefone fora do gancho. E mal se alinhavaram os pensamentos e idéias, nem nomes foram ditos com sobrenomes e estavam eles na cama, dando e recebendo. Amando e sendo odiados reciprocamente.
Mas ela só pensava, mesmo penetrada com doçura e força, no som exaustivo, repetitivo e enfadonho do pêndulo de seu cuco e do esforço viril do rapaz. Não se concentrava, não gozava, não sentia. Apenas doía em sua alma o desejo dele e seu corpo juvenil sobre o seu quase martírio feminino adulto.
Meia noite e o pássaro saiu da casa aos doze cantos programados pelo relógio. O sexo acabou ali, sem menores ou maiores explicações por parte dela, que apenas pedia que ele fosse embora, nu se preciso fosse. Mas que fosse logo!
Foi quando Jennifer teve a grande idéia que mudaria sua vida para sempre...
Vendeu o cuco a um antiquário e pelo mesmo valor do relógio comprou vários vibradores e saiu à procura de uma namorada.
Chega de homens, seus pêndulos e seus cucos! Chega!




... GATO LARANJA ...
24-02-2008

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