O Sonho de Mirella

Estava ela na praia, à luz do sol. Do mar reluzia um cheiro de rosas, todos à sua volta sentiam essa brisa de flores ressabiados e deitados em cadeiras de vime já não encontradas em nossos verões modernos. O perfume das rosas, apesar de inóspito não mexia com os pensamentos de Mirella e sim o calor da estrela maior bronzeando seu corpo lindo escultural, morena à brasileira, violão de mulher.
Quando não em segundos de relógio o sol lindo se degradava atrás de algo que não era uma nuvem noroeste, nem frente fria vinda do sul. O céu escurece de repente. Então é que sua visão pensa estar a ludibriando, mas não! Uma grande onda se ergue no mar. Sim, á ela! É ela que escurece a luz do dia, o sol desaparece atrás da onda. Navios e barcos à deriva de suas escolhas capitãs e âncoras viram meros brinquedos pequeninos pelo vulto da onda. O horizonte desaparece em uma imensa vaca precípta.
Um barulho estrondoso que se ouvia desde a praia até o centro da cidade tomava conta de ouvidos avisados ou não pela imagem da catástrofe. Os passos largos de suas lânguidas e esculturais pernas correndo muito não a livravam da hecatombe da vaca se fechando em sua cabeça, em cima das pessoas e de sua cidade.
Quando sua mãe sentada ao pé de sua cama repete insistentemente:
- Não vai ao trabalho hoje minha filha? Já são horas!
A imagem de sua bronca mãe chega a ser uma luz num túnel escuro, tamanho o pesadelo passado. Seu café com leite ainda sem açúcar parece doce à lembrança do pesadelo ainda vivo em sua memória sonolenta. Pela décima vez este sonho ainda a persegue. Nunca tivera sonhos relevantes antes. Mas ser engolida junto aos seus não era apenas um pesadelo, e sim o sonho mais apavorante que Mirella já tivera.
“E se repete, por quê?” Num pensamento perdido no ônibus o questionar do inverossímil a põe de joelhos em sua praia de fantasias.
Ao chegar à empresa, seus pensamentos se misturam e se esvaem numa confusão de compromissos e pendências anteriores de seu trabalho. O dia passa lento interminável à pressa de suas tarefas profissionais. Ao demorar o poente do tempo irremediável do relógio girando em seu descanso de tela, voltam em suas questões pessoais a onda e sua hecatombe fantasmagórica.
“Que raios de sonho é esse?”
Ao chegar em sua casa depara-se com uma cena comum e costumeira de seu pai Antonio sentado ao sofá lá pela décima cachaça do bar da esquina lhe rogando: “Deus lhe abençoe minha filha! Como foi seu dia?” Como se tal pergunta tivesse importância aos dois, ela cansada pensativa e ele embriagado de seu trabalho e sua cana costumeira, diária. Ignorou-o como de costume. Dona Viviane ainda na cozinha ao sentir a entrada triste de sua filha bradava:
- Venha comer minha filha, vai esfriar!
- Boa noite mãe. – respondia Mirella ainda pensativa e agora chateada com seu cotidiano besta. – Já vou, vou me lavar antes!
O barulho insosso da água da torneira do banheiro nem de longe lembrava sua praia de pesadelos. Mas a remetia ao medo do afogamento inevitável de sua onda. Afogamento este que em seu sonho nunca chegara a findar-se, pois sempre acordava antes de sua eminente morte surreal.
Arroz, feijão do almoço requentado, ovos estralados e batatas fritas. Era como se Dona Viviane sentisse seu desejo de sentir-se em casa ao menos uma vez em seu próprio lar sem graça, amor.
Ao deitar-se Mirella vivia a angústia de um náufrago esperando sem colete e bote salva vidas seu barco afundar. Mas tamanho o cansaço que seus olhos apagavam-se antes da luz de seu telefone transformado por ela segundos antes em despertador. E num estridente barulho de musiquinha de celular modernoso, entende, sente e agradece por mais uma noite sem praia, sem barulho de uma vaca imensa e sem ondas de afogamento em seu sono de trabalhadora infeliz. O cheiro do café de sua mãe indica o começo de um novo dia e a anti-presença de seu pai que madrugava para o trabalho. Sem beijos e sem bom dia minha filha.
O ônibus, a mesa e o computador a fazem esquecer de anteontem e seu sonho mortal. Volta a sentir-se bem. Ao menos longe de casa. Assim entorpece sua alma e sua vida em obrigações, prazos, broncas dadas e recebidas, profissionais competentes e incompetentes à sua volta, viajando em sua nau empresa. Esta sim, navegando em mares calmos diante dos marinheiros ultra-atarefados. Seu computador e sua colega de trabalho avisam que é hora de voltar ao nu da vida crua. É hora de ir embora.
Vontade de chegar em casa depois dos dezoito anos completos ela nunca teve. Ambições de morar sozinha passavam longe de sua realidade assalarial e de sua vida triste. Odiava sua casa, ou seu lar. Teve dezenas de vontade que seu ônibus de volta vivesse em voltas intermináveis. Rodando a esmo sem nunca parar no ponto perto de sua rua.
Ao deparar desta vez, como em algumas outras a ausência de seu pai no sofá. Sabia que o destino de sua hora seria o mesmo do pedido vindo da cozinha sob a voz de sua mãe:
- Vá chamá-lo no bar minha filha! Ele deve ter esquecido o relógio!
- E desde quando ele olha para o relógio a não ser para ir ao trabalho!
Saiu de casa a caminho do bar da esquina com um sentimento rês na forquilha abatedoura. Odiava tudo aquilo. Odiava seu pai. Odiava o bar. Odiava tudo. Não precisou chegar à fatídica esquina e encontrou o velho jogado na sarjeta como um andante bêbado.
- Pai, levanta, vamos pra casa! A mãe tá preocupada!
- Boa noite minha filha! Como foi seu dia? – sussurrou alcoolicamente o velho como se em seu sofá estivesse deitado, e não em cima da vergonha de sua família e da alma de Mirella.
- Levanta pai!
O arrasto do velho até o terceiro andar de um prédio sem elevador foi trabalho herculano. Mas o ódio e a lucidez de Mirella a fizeram encontrar forças dentro de si, que nem a vizinha à porta assistindo a cena avassalou sua determinação. Ainda que sua vontade real fosse de subir e jogar o velho lá de cima pela janela. À casa sua mãe fazia de conta de que nada anormal estava ocorrendo. Pois era verdade. Quantas vezes a filha já não arrastou o pai para casa? De anormal nada tinha o ato de força exterior e interior da filha. Mas o normal era mesmo o mal-agradecimento e as injúrias paternas na hora do chuveiro de bêbado que a mãe providenciava nessas ocasiões.
Mirella desta, como doutras vezes, deitou-se sem comer. Ajustou o celular e adormeceu. Já em sua praia de vimes e odores de rosas, pensando em seu bronzeado lindo e seu corpo de desejos masculinos. O céu se escureceu novamente, barcos ficaram à deriva da sorte outra vez e o estrondo foi maior que dos outros pesadelos. E num relance de fúria e coragem, vendo as pessoas correrem da morte inevitável, ela parou e olhou para dentro da vaca gigantesca vindo em sua direção e não correu. Esperou sua hora encarando seu destino de afogada. Esperou e foi engolida pela natureza mortal da onda. Respirou fundo e no instante em que sentia ser arrastada pela força da natureza e sua crueldade tissunâmica, sentiu penetrar em seu ser o odor das rosas e por alguns segundos mergulhada no fundo de uma mar azul esperando sua morte. Enxergou seu pai anos antes sorrindo sem estar embriagado a esperando voltar da escola no portão de sua casa com um beijo enorme em seus desejos, viu sua mãe feliz regando os vasos de planta e assoviando velhas canções dos anos sessenta, com abraços e apertos de espera de sua filhinha que chegava feliz. Sentiu o ar acabando e a água entrando em seus pulmões lentamente com sua fragrância rósea. Viu ainda uma foto sua e de sua falecida juvenil irmã abraçadas em uma casa vendida anos antes. Sentiu seu último olhar levado pela onda gigante à um tempo em que sua vida nunca mais a deixou pensar e lembrar. Deu um beijo na sua mãe, um abraço bem apertado em seu pai e fechou seus olhos azuis e grandes de afogada. Seguiu seu destino de concha no fundo do mar e morreu.
Não acordou mais, não foi trabalhar e foi feliz em paz no mar de suas lembranças passadas. Mesmo com sua mãe tentando dizer que estava atrasada!



GATO LARANJA
19-03-2008



Um comentário:

Viviane disse...

adorei o blog !
o nome. as idéias...
e com sua licença, vou adicionar ao meu...
afinal, vira-latas unidos jamais serão vencidos...

foi um prazer conhecer o espaço.
voltarei sempre.