Ana Lee e a Liberdade (parte 1)

Liberdade é uma conquista. Para vocês humanos logicamente, pois nós gatos, parafraseando o poeta, já nascemos livres. Nenhuma jaula forçada pode segurar o coração liberto de um felino, nenhuma.
E isto me fez lembrar de uma menina inesquecível em minha alma de sete vidas que conheci e conheço em meus muros que se chama Ana Lee. Se eu aqui fosse falar tudo mesmo sobre ela escreveria um romance lindo, pois ela é incrível e sua história, que apesar de sua pouca idade aí pra vocês humanos, é longa e recheada de sonhos. Sonhos e ideais de conquista simples, mas humanos e verdadeiros. Como todo sonho deve ser para não virar pesadelo futuro.
Dizem que toda liberdade tem seu preço, para todos. Mas para Ana Lee essa liberdade tinha preço sim, mas não era em valores financeiros que ela media isso, ela quantificava seu sonho de ser livre em um único número. O número vinte e um. O dia eu que completaria vinte e um anos.
Nascera ela de uma boa família, pais inteligentes e modernos. Desde a infância primeira, Ana Lee se mostrava diferente. Mostrava-se inteligente a olhos vistos de seus familiares. Tanto que aprendeu a ler muito precoce, e desde que leu seu primeiro livro nunca mais parou de ler. Tinha uma tia que achava que ela era reclusa demais e até meio fechada pra sua idade. Que havia algo estranho nela ao ponto de ela ser sempre mais feliz com um livro na mão do que brincando com seus amiguinhos na escola.
Mas uma coisa intrigava muito seus pais, seus irmãos e ela mesma. Pois desde que pode se queixar de alguma coisa em sua vida ela se queixava de dores profundas em suas costas, na altura de seu coração para ser mais exato. Levaram esta menina à médicos profetas, doutores intrigados, curandeiros disfarçados e nada se encontrava nela que justificasse essa dor. Nem exames clínicos e muito menos psíquicos. Mas ninguém nunca pensou em tirar uma radiografia de sua alma.
Na medida em que Ana Lee ia crescendo a dor aumentava, a ponto de seus pais acharem que essa dor era invenção de sua cabeça sonhadora e fértil demais para sua idade. Que era tudo uma farsa tirada de seus livros para que a atenção lhes fosse chamada. E foi assim que pararam todos de levar a sério suas queixas e suas dores.
Aos treze anos Ana Lee foi apresentada ao amor. Que veio feito fúria de vento noroeste avisando chuva forte. Não pôde dizer isto a ninguém, pois a dor em suas costas aumentava à medida que o fogo da paixão dominava seu coração adolescente. E já há tempos tinha perdido o diálogo generoso e infantil de outrora com seus pais. Desse amor veio um namorado que lhe apresentou algo novo em sua vida, um violão. Que logo entre seus primeiros olhares ao novo aparelho de sonhos e seus primeiros acordes, somou-se em sua estante de livros como coisa nascida nela e inseparável dela. Mas as dores aumentavam e muito.
Um dia, em seus livros, um índio de antiga monta americana lhe deu em segredo um amuleto cor-de-rosa para que usasse pendurado em seu pescoço sempre, a fim de diminuir sua dor nas costas. Ela nunca mais o tirou do pescoço e sempre que ainda a vejo, este amuleto reluz e me remete a este tempo da vida de Ana Lee, quando ela veio e me mostrou o amuleto, lindo em forma de coração.
Aos quinze anos Ana Lee sentia uma vontade imensa de sumir, pois sentia seu sonho de ser livre sempre castrado por seus pais que não a entendiam e muito menos a levavam a sério sobre suas vontades e suas dores. Queixava-se e era trancada em seu quarto com seus livros e seu violão, pelos pais ou por vontade própria. E assim um dia tomou uma decisão radical: fugiu de casa. Entretanto, sua pouca idade e sua pouca perspicácia sobre o mundo exterior, logo levaram seus pais a seu paradeiro, seu esconderijo, seu amor. Isto foi o ponto chave para que mais privação de liberdade se fizesse presente em sua vida e no seu dia-a-dia. Foi mandada para uma psicóloga. No começo ela não gostava, mas depois ela descobriu em sua terapeuta uma amiga de ouvidos atentos, conselhos honestos, palavras diretas e amor por ela mesma.
Até o dia em que completou dezoito anos e numa noite fria de um verão quente, estava eu em meu muro e ela apareceu chorando e dizendo que não suportava mais aquela dor nas costas e que alguém deveria ajudá-la. Mas como eu gato vira lata poderia falar algo sobre o que nunca foi tirado de mim do jeito que acontecia com ela. Conversamos horas sobre o amor, sobre música, sobre sonhos e lua cheia. Senti que seu coração se abrandou com nossa conversa. Senti que ela precisava de alguém que a ouvisse e a sentisse. Senti até dúvidas em meu próprio coração sobre ela. Que as carrego ainda.
Dezoito anos não lhe serviram de nada, ela me confessou numa tarde de sábado em que eu em meu telhado tomava sol nos pêlos. A não ser para poder dirigir e escolher sua profissão. Mas as regras e dúvidas eram tão grandes em seu coração que resolveu esperar mais sobre seus caminhos humanos profissionais. Olhou num espelho, viu imagens distorcidas dela mesma e se aquietou.
Só que uma coisa não mudava em nada: suas dores nas costas. E o que eram apenas dores no começo de uma vida feminina agora eram suplícios por remédios, conselhos e magias para que o tormento e o peso do mundo parassem de doer em sua carne de tão violenta forma.
O tempo foi passando e fui ficando mais próximo dela. Comecei até a freqüentar os muros de sua casa. E quase toda noite a chamava para conversar pela janela sobre o mundo e sobre poesia. Coisa que sempre gostamos muito. Nossa amizade se fortaleceu e ela encontrava em mim e em sua terapia semanal forças para vencer suas dores. Eu nem sempre me sentia bem, pois a fato de ser um felino quadrúpede e de pêlos cor-de-laranja me impediam que nossa amizade fosse além de nossas aparências. Mas nossos olhos não mentiam e isso era bom. Era como se a verdade se tornasse pura entre nós.
Até que o grande dia estava chegando para ela. E na noite antes de fazer vinte e um anos ela caminhando com dificuldades devido às dores veio perto de mim e me deu um abraço forte, e feliz me disse que seu sonho desta noite seria realizado. Eu chorei de emoção de vê-la tão sofredora e tão feliz ao mesmo tempo.
Fui fazer minhas rondas pelos muros da vizinhança até o dia nascer, em companhia da minha lua cheia. E a cena que vi ao amanhecer nunca mais saiu de minha cabeça. Mas antes de contar o que vi no raiar do dia, conto o que Ana Lee me disse sobre aquela manhã.
Ela disse que foi dormir feliz esperando sua alforria, sua maioridade. Mas ao deitar-se a dor de que sempre fora acometida se tornou tão forte que achava ela, em delírios, que a morte estava a levando embora. Já na cama não suportava mais o peso do mundo em suas costas. O colchão parecia, em contato com sua pele, como que brasas ardentes de uma fornalha do inferno. Mas de tanto sofrer sucumbiu à dor e apagou seus olhos sofridos de vinte e um anos vividos em tormento. Ao acordar, pela primeira vez em sua vida levantou sem dor alguma. Estranhou muito tudo aquilo. A dor sumira, mas algo estava ainda pesando em suas costas. Foi quando ao se deparar nua em frente ao espelho notou grandes asas brancas saindo como que por mágica atrás de si mesma. Das sua costas. Não acreditava no que via e no que estava acontecendo. Mas se sentia imensamente feliz com aquilo tudo. Sua asas eram feitas de carne e ossos cobertas de penas alvas e amáveis. Sensíveis e macias.
E o que eu vi de cima de meu muro foi a imagem de um anjo lindo, saindo voando de sua janela em direção ao céu, em direção à liberdade. Com suas asas brancas douradas pela luz do sol radiante daquele dia feliz.



GATO LARANJA
29/03/2008

Um comentário:

Katia em anexo disse...

Lindo conto Gato Laranja, amei o blog e desconhecia essa sua fluencia em escrever... muito bom...
bjs p/ ti...