O Cavalheiro e a Vagabunda

Pode parecer ironia do destino, ou até como dizem por aí, coincidência. Mas Carlos conheceu Lucy em seu trabalho. De uma forma como conhecia tantas outras pessoas diariamente.
Ele, advogado em começo de carreira, trabalhando arduamente no período da manhã em um escritório em que vinte e tantos outros advogados como ele se digladiavam pelos poucos míseros cientes que apareciam vez ou outra. No período da tarde, mal almoçava e corria para a Defensoria Pública, onde atendia pessoas que não tinham condições de pagar por consultoria jurídica, ou mesmo processos a serem tramitados.
Como já se sabe, neste tipo de lugar é onde as pessoas humildes e principalmente pobres recorrem a advogados em busca de auxílio, consolo e também soluções para seus problemas judiciais.
Carlos tinha a sensação real de que trabalhava muito e ganhava pouco. Mas na realidade era o contrário, ele ganhava pouco para muito trabalhar. Mas isto, vamos e venhamos leitor, não é só com o Carlos que acontece neste país. E não é só privilégio de advogado em começo de carreira.
O que ele nunca esperou que acontecesse ali, naquele ambiente burocrático, cercadas de pessoas cultas e estudadas dando e buscando soluções a problemas de pessoas simples que seu coração fosse como que lhe arrancado do peito.
Ele tinha mais do que uma namorada, ele tinha um compromisso sério, tinha uma noiva. Mas o destino, ah!... O destino.
Sempre tivera certeza em seu coração e em seu noivado namoro de quase oito anos que ela era tudo o que sempre sonhara.
Uma moça inteligente e bonita, esforçada estudante de medicina, uma família que o considerava já como que um filho, uma dedicação mútua e incondicional na paixão, no dia-a-dia, no amor e no sexo.
Mas quando Lucy sentou-se pela primeira vez em sua mesa na sala da Defensoria, algo em seu âmago mudara na hora. Ele, sempre cético, perspicaz, audacioso, melindroso e preparado para qualquer pergunta, como que sendo a confirmação de sua vocação para o Direito Civil. Ouvindo as queixas de uma mulher simples, sentiu seu coração se partir. Coisa estranha para seu entendimento do Direito e o do que é ser um homem direito.
Ela falava sobre seu problema de trabalho com uma pessoa que, se entendendo seu patrão de fato, não conseguia se desvincular dele. Pessoalmente e profissionalmente. Ao caso de até ter apanhado deste por tal tentativa.
Mas Carlos só prestava atenção em seus lábios doces, sua voz meiga e seu sorriso encantador. As palavras saiam da boca dela como que um canto de anjos ao raiar do dia. Não conseguiu prestar atenção em nada do que dissera a moça, ao ponto de pedir com uma gentileza incomum a ele, que ela repetisse suas queixas. E aí a ficha caiu sobre as queixas da rapariga.
Ela apanhava de seu cafetão, pois era prostituta de rua, tinha residência fixa, mas não conseguia se livrar daquele aproveitador de meretrizes mal amadas assim como ela.
Neste exato momento, concentrou-se no caso simplesmente, ouviu e deu suas opiniões. Marcando um outro dia para que pudesse estudar melhor a situação deprimente dela e aí sim, tentar esboçar um processo ou coisa que valha.
Nesta mesma tarde atendeu outras pessoas, e ao se pegar pensando em Lucy, vez ou outra, perdia sua linha de raciocínio e a razão daquilo ser verdade em sua alma. Sentiu-se como que numa bolha de vidro o dia todo, com um pensamento perdido e confuso.
Ao chegar em casa, deparou-se com uma surpresa preparada por sua noiva. Um jantar a luz de velas, uma cama cheia de pétalas de rosas e uma moça magnífica numa lingerie preta. Roberta adorava surpreender seu noivo com coisas deste tipo.
Mal jantaram, e estavam se amando, aos beijos e preliminares intermináveis, mas na hora em que estava gozando mesmo se pegou transando com Roberta e pensando em Lucy.
Fingiu que nada estava acontecendo, mas naquele quarto escuro de seu apartamento simples, deitado na cama com uma mulher esplendida ao seu peito sonhando e dormindo angelicalmente, estava insone, pensando onde estaria Lucy naquele momento? Onde ela estava em seu peito? Que por mais que tentasse, não conseguia dormir com um certo ar de culpa de tudo o que estava lhe incomodando. Não podia estar acontecendo aquilo com ele. Não com ele.
Os dias se passaram como que se vinte e quatro horas fossem quarenta, nas noites quentes de amor com Roberta só conseguia prosseguir se pensasse em Lucy. E isto sim o incomodava. Mas o tempo não passava. Aquele dia marcado para a conclusão do ato jurídico da moça de rua não chegava nunca.
Mas este dia chegou. Levantou cedo, foi para o escritório, contava as horas e nem almoçou foi direto para a Defensoria.
Ao notar Lucy entrando no salão de advogados públicos, reparou que seu sorriso estava manchado por um inchaço, conseqüência de alguma briga ou golpe que a moça levara. O coração dele encheu-se de ira, mas acalmou-se quando a moça sentou, o cumprimentou e sorriu um sorriso dolorido, mas ainda doce.
Ele fingiu que nada acontecia, seguiu todos os protocolos, averiguou informações sobre o problema dela até que ela, sem nenhuma maldade, perguntou:
- Você tem namorada, esposa?
Carlos perdeu os sentidos por alguns meio segundos e respondeu que sim. Era noivo, iria se casar ao término da graduação da noiva.
Neste instante o sorriso de Lucy como por mágica desapareceu, mudou de postura em sua cadeira de ‘cliente’ e voltou ao assunto do cafetão com a maior naturalidade.
Tal atitude reduziu Carlos a nada por dentro. “Porque dissera a verdade? Não poderia ele simplesmente ter sido mais advogado que humano e mentido?”
Ao término da reunião, ela saiu, mas antes deu a volta na mesa, aproximou-se dele e lhe deu um beijo no rosto. Virou-se e foi embora, com a promessa de voltar na próxima semana para assinar procurações e o início do processo.
Carlos sentiu uma vontade louca de sair correndo atrás da moça e lhe dizer o que sentia por ela. Mas o que sentia ele? Desejo? O que dizer?
Ficou imóvel com a sensação maravilhosa daquele beijo em seu rosto.
Foi o que bastou para a semana não passar novamente, nem os amigos, o futebol, o sexo, o vinho, nada fazia sentido. Sentia-se um viciado que só pensava em sua droga. Seu anjo, sua prostituta, seu amor.
O tempo não passava, mas a conjugação verbal muda e o tempo passou e ela não veio.
Aflito seria pouco para descrevê-lo ao notar que ela além de se atrasar, não viria, como não veio mesmo para assinar os papéis do processo.
Amigo leitor, nem preciso falar aqui sobre a vertigem, sobre a dor e a insegurança que ele sentiu, pois imagino que todos que amaram, pelo menos uma vez na vida já passaram por essa situação de perda do que não tem. E isto é pior do que se perder o que se tem.
Saiu do escritório público direto para o centro da cidade, esqueceu-se de ir para casa e ficou vagando pela noite com seu paletó nas costas pela zona de meretrício em busca dela, seu anjo do mal. Seu amor prostituído.
Mas isso, o fato de ela ser prostituta já nem o incomodava mais. Ele apenas a queria e para sempre.
Avistou de longe uma mulher apanhando muito de um homem grande e forte, e como o destino é cruel às vezes. Viu que a mulher era Lucy.
Correu para apartar a acabou apanhando junto com ela, no mesmo instante em que a polícia chegou, enquadrou e levou os três para delegacia. Num lance cinematográfico o cafetão fugiu e sobrou só para os dois pombinhos.
Ao sentarem-se os no banco da sala do escrivão, atados na mesma algema, Carlos olhou para Lucy, e ao receber o retorno deste olhar dela, disseram em uníssono: “Eu te amo!”
E foi assim a forma em que algemados literalmente, algemaram-se duas almas distintas, na vida e na sorte, em profundo amor para sempre. O cavalheiro advogado e a vagabunda prostituta.





... GATO LARANJA...
04/03/08

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