O trabalho simplifica o homem

Quem não quer ficar rico?
Raramente alguém responderá esta pergunta com uma negação, obviamente àqueles que já o forem. Lembrando que tem ricos que querem ficar cada dia mais ricos e diriam sim à minha simples pergunta.
E este era o sonho de Antônio Carlos. Como o de muitos outros por esse Brasil. Mas a realidade dele, seu cotidiano o levava sempre ao mesmo dilema: trabalhando eu não fico!
Não que nosso amigo Antônio Carlos não gostasse de trabalhar, muito pelo contrário, ele era esforçado e gostava do que fazia. Tinha verdadeira paixão pelo seu ofício: professor de história.
Dava aulas em duas universidades e um curso preparatório para concursos.
Seus alunos, não conseguiam tirar o olho de suas aulas. A paixão era tanta que as pessoas menos avisadas sobre o que estava sendo dito, sentiam-se num comício eleitoral. Tamanho furor, tamanha capacidade e dedicação, garra e euforia do mestre. Tamanho carisma.
Mas esta empolgação toda se esgotava logo que ele, tarde da noite chegava em casa e deparava com um apartamento simples, móveis velhos e rústicos, uma luz queimada no banheiro que nunca era trocada por falta de tempo e sua geladeira quase vazia.
Comia uma maçã e deitava em sua cama dura, colchão velho, presente de sua avó ainda em tempo de faculdade.
Lia sempre algo, de preferência autores romancistas e cronistas. Vida dura, simples. Urbana.
Acordava muito cedo, pois dependia de um ônibus que passava a cada duas horas em sua rua, o de número treze e se perdesse ele chegaria pelo menos duas horas atrasado, coisa que nunca acontecera em sua vida profissional.
Depois um metrô para chegar ao seu primeiro emprego, uma faculdade em que dava aulas para a cadeira a que fora formado: história.
Seu desânimo acabava ali na entrada da sala de aula, junto com a digestão de seu café com leite, pão e margarina tomados horas antes.
Começava a falar, fazia a chamada rapidamente, pedia para os desinteressados que saíssem antes de sua aula do dia e começava seu discurso, preparado há anos, para seu dia-a-dia de aulas, mas com o mesmo entusiasmo da primeira vez.
Uma coisa interessante era que ninguém saía de sua aula, nem para fumar ou ir ao banheiro. Ficavam todos ali, olhos atentos, interessados naquela magnífica aula.
E assim passava sua manhã. Almoçava no refeitório dos professores e pegava mais dois ônibus para sua segunda jornada.
Sempre, mas sempre mesmo, pensava em desistir daquilo tudo. Mas ao décimo arroto de sua refeição estava ele novamente empolgado e empolgando na sala de aula num curso de direito vespertino.
Seus alunos sentiam-se privilegiados por terem ele como professor daquele curso.
Saía para sua terceira jornada feliz, com uma maçã nas mãos e sentindo que só mais duas horas e acabariam suas aulas e seu cansaço. Ledo engano.
Duas horas depois, terceira jornada cumprida e seu cansaço aumentava. Pensava na volta pra casa. Dentro do ônibus lembrava dos tempos da faculdade e dos sonhos.
Lembrava de que tinha a intenção de escrever a história em livros, mestrados. Dialéticas avançadas e pesquisas. Mas tudo ficou para trás, tudo ficou na necessidade de sobreviver e pagar suas contas e o aluguel.
Abro um aparte meu caro leitor para dizer algo que tenho travado em minha garganta há anos, mesmo sendo eu um gato e nunca ter sido um mestre em nada: Como professor ganha mal neste país!
A melancolia de sua chegada em casa se repetia diariamente, ao ir ao banheiro já estava acostumado a tatear no escuro para tomar banho e escovar os dentes. Jantava a sobra do jantar da noite anterior ou outra maçã.
Até que certo dia, num desses jantares de sobra de comida de ontem, a luz do banheiro acendeu sozinha como por mágica. Levou um susto muito grande. Deixou que o prato simples de feijão e arroz sem mistura caísse no chão. A televisão desligou. Teve muito medo simplesmente.
Foi ao banheiro, olhou para todos os lados, nada viu de diferente senão aquela luz antes queimada, agora nova.
Limpou a sujeira de seu jantar interrompido e foi para cama.
E pela primeira vez em anos, rezou. Fechou os olhos e dormiu.
Sua rotina se repetiu vários dias, mas sempre ao retornar para casa, a primeira coisa que fazia era ir ao banheiro. Conferia a luz, que sempre funcionava.
Tomava banho, jantava vendo televisão e dormia. Mas agora sempre rezava, pedia que Deus o protegesse de algo que não sabia o quê, mas o incomodava muito.
Meses se passaram, até que um dia já indo dormir, ouviu uma voz vinda do banheiro. Nem pensou duas vezes e deitou-se na cama. Rezou muito.
Não consegui pregar os olhos, virava de um lado para o outro, esperava algum outro som que não fosse o trânsito quase nulo de sua rua, de seu ventilador de teto ou do ar condicionado de seu vizinho de cima, e nada.
Levantou da cama sem dormir, foi ao banheiro devagar, com um medo juvenil, e nada encontrou.
Pronto sua rotina estava estabelecida de novo. Só que com um porém: Não conseguia se concentrar na aula, estava sonolento e seus alunos o perceberam assim.
Perguntavam se algo estava errado com ele, se estava doente. Mas a resposta era a mesma: uma indigestão noturna que não o deixou dormir direito e ainda doía muito.
Sabia que se falasse a verdade seria motivo de chacota de seus alunos. Nem ele acreditava direito no que estava acontecendo.
Mas entrou em casa desta vez receoso e não foi, como de costume, conferir a luz do banheiro, não tomou banho e nem escovou os dentes. Foi para cama direto, sem televisão, sem jantar. E rezou.
Num instante de pausa entre suas orações e insônias ouviu novamente a voz vinda do banheiro, e desta vez entendeu o que a voz dizia: “Antônio, venha cá”.
Pergunte-me se ele foi. Vamos, pergunte-me.
Que nada, entrou embaixo de seu travesseiro, se enrolou todo nos lençóis e pedia a Deus misericórdia pela sua vida, sua ganância em querer ser rico, pela sua falta de apego nas coisas poucas e boas que conquistara, pela profissão a que amava mas não dava o valor que merecia por ganhar mal e num instante pensou: “Gosto do que faço, e o faço bem meu Senhor!”
A noite foi passando entre pedidos de misericórdia, perdão e medo de Antônio Carlos. Este certo que Deus o ouvia ali, entocado em seus lençóis e travesseiro. Com muito medo.
Amanheceu o dia e pela primeira vez em treze anos não foi trabalhar. O telefone tocava, mas ele não atendia. Eram os colegas de trabalho preocupados com sua ausência e ele sabia disso.
A luz do dia começou a adentrar seu apartamento pelas frestas da janela de seu quarto.
Pegou a primeira roupa que estava à mão e saiu para a rua, tomou seu café na padaria da esquina com medo das pessoas. Estas que o olhavam cheios de receio pela sua face pálida e seu semblante de louco. Insone.
Ao sair da padaria viu um pacote de notas de cinqüenta reais no meio fio, nem pensou duas vezes e se lançou sobre ele no mesmo instante em que ouviu um grande ranger de pneus e sua vida acabou embaixo do ônibus de número treze, o outro de duas horas após o seu de costume diário há treze anos.



Gato Laranja
13/03/2008