Passional

Eu espreitava pela fresta da madeira, esperava pelo momento em que você passaria por ali. Ai que bom saber que seu fim estaria próximo ao meu começo de vida feliz. Tudo acontece como deve ser, e eu tinha certeza que deveria ser assim. Não é minha razão que diz e sim meu coração que grita, clama, sofre pelo seu sorriso. Sorriso de hora marcada para calar e doer. Eu marquei a hora. Eu, deus de mim, defini o que é bom para nós.
Estava quente lá na alcova nossa, dezembro nesta cidade é muito abafado, chove de vez em quando quase todo dia, mas o calor só aumenta. Eu trancado ali naquele forno com todos estes pensamentos fervendo em minha cabeça. Fica frio meu caro! Eu pelo menos sinto meu coração gelado. O corpo ferve, mas o coração é gelo. Minhas mãos tremem um pouco, mas passa com adrenalina.
Lembrar daquele bilhete na escrivaninha era coisa que me apertava o peito de uma forma torpe e causava em mim mais vontade ainda de apressar o tempo pra te ver passando e aí sim, ...
Que ódio!
Dizem por aí que ódio é amor ao contrário. Aí penso que devo te amar muito ainda, mesmo depois de todo suor, de toda lágrima e de todo meu plano que, avaliando bem, meio certo deu. Meio certo sim, pois eu não esperava o que passo hoje naquele momento em que suava dentro daquela cabina de madeira de construção.
Que demora! Você não passava, eu fumei mais. Eu esperava dentro de um cachimbo quente. Este cachimbo me fumava e eu o fumava pra você. Para o seu momento único. Nosso dia “D”. Coisa de guerra mundial e suas nuances em nossas almas sofredoras. A todo o momento eu mexia na arma, carregava e descarregava o pente de balas. Saiba você que eu pensei sim nisso! Pus a arma na boca várias vezes, pus na testa, encaixei no osso do peito. Sem chance... eu te amava muito pra ter coragem de me matar. Daí eu fumava mais daquela pedra maldita em que nosso amor tropeçou. Mas o dia era seu, não meu. Que ódio de você eu sentia! E eu te amo ainda...
Mas que nada, olhando para trás eu não me arrependo do que fiz não. Eu lembrava do bilhete o tempo todo, o momento seu e do seu beijo que sumiu de minha boca. Travava e destravava a quadrada em minhas mãos, e eu olhava pela fresta da porta do barraco. Meu medo sumiu, sou macho traído, sou capacho fodido, fumando pedra e sonhando com um pesadelo desejado por nós.
Pago caro ou barato o nosso fim eterno? Pago?
Peguei você no pulo dias antes do que fiz. Queria não ter sabido de nada. Mas a razão é sempre saber de tudo, e a verdade veio até mim e me fodeu, me doeu, me matou. Que amor incompreensível que por você sinto ainda, estou trancado aqui comparando aquele momento nosso com este aqui meu. Pelo menos estou novamente num cubículo pensando em você. Sonhando com você e vivendo de certa forma você e o que eu fiz por amor e ódio.
Ai, ai, ai... barulho de carrinho de nenê, você estava vindo a meu encontro inesperado, fumei pela última vez em minha vida aquele cachimbo amargo que me perseguia. Você estava passando e saí rápido dali. Nossa! Como nossa filha ta grande! Ela disse “oi papai”... Olhei pra você e atirei sete vezes na sua cara. Não queria te ver agonizando, deveria ser instantâneo e foi. A pequena chorou e eu a peguei no colo, nós dois chorávamos enquanto eu explicava o que fiz pra ela. Falava pra minha nenê que eu a amava muito, que ela era pra sempre minha filha e não importasse o que acontecesse, eu voltaria pra amá-la mais ainda. Que a distância nossa passaria logo e pra ela não chorar. Mas ela chorava mais que eu ali naquele fim de vida sua.
A polícia chegou e eu não vi mais minha filha até hoje, você não deixava mesmo eu vê-la antes. Sinto saudades de vocês duas. Mas mesmo aqui preso eu digo que te amo, mas não me arrependo de nada!
Fiz-te viver na morte! Eu sou deus! Traído por uma mortal, mas sou deus!


Gato Laranja
8/8/2008

3 comentários:

Samantha Steil. disse...

dilascerante.

Unknown disse...

e aí vagabundo

Ver a luz se há disse...

Gosto quando escritores liberam seu lado assassino.
Belo texto.